Telha-lusa, a praga que destrói a paisagem portuguesa

Desde Alfama, passando por Évora e continuando por todo o território nacional, Açores incluído, a praga desta telha não deixa recanto incólume. E também chega aos monumentos, o que é verdadeiramente escandaloso!

Ao fundo, a cal das casas cobria-se de uma leve aguada cor-de-rosa e o distante horizonte resplandecia, com dourados de sol, brilhos de rio vidrado, fundindo-se numa névoa luminosa, onde as colinas, nos seus tons azulados, tinham quase transparência, como feitos de uma substância preciosa (Os Maias, Eça de Queiroz)

Na literatura clássica, a referência constante à expressão dos elementos naturais e à sua influência no quotidiano das pessoas, revela uma realidade onde a sua presença tinha um espaço e um peso que desapareceu por completo do mundo actual.

Gonçalo M Tavares fala do "mundo da paisagem técnica em que os elementos naturais estão escondidos – quase já não há montanhas nem terra". Isto é, os influxos da natureza e da paisagem em estado harmonioso que se estendiam a toda a volta no campo e que invadiam as cidades, vilas e aldeias, quer nos jardins, logradores, quintais e hortas, quer na "arquitectura que repetia as formas naturais e ampliava a sua beleza" (príncipe Carlos de Inglaterra), foram substituídos por uma paisagem desnaturada onde o cimento, o alcatrão e a monocultura impuseram o seu império sufocando as leis que regem as dinâmicas do mundo natural.

Sendo a natureza o molde do ser humano, a sua presença é fundamental para proporcionar bem-estar, protecção e sentido de existência. A mãe-natureza mima-nos com a sua presença: as plantas, os animais, os aromas, os sons, as cores, as formas e as vistas constituem bálsamos preciosos contra ansiedades, carências e angústias. Contudo, hoje "vivemos destacados da rocha-mãe e separados do hálito dos campos", estando o nosso habitat reduzido ao subúrbio, ao gabinete e ao habitáculo motorizado, contribuindo tal situação para o embotamento drástico dos nossos sentidos.

Por isso, não é de admirar que em Portugal ainda vivamos sob o mito do "jardim à beira-mar plantado", ancestral imagem de marca do nosso país e que, pese embora a sua evidente erosão, sobrevive, não obstante, na convicção de que o país é bonito, tem magníficas paisagens e tem património tradicional. Não nos apercebemos que esta crença está totalmente desactualizada, colidindo com a realidade que revela um território, com uma evidente e crescente desarmonia, fealdade e desarticulação ambiental e patrimonial - "o território português é hoje caracterizado por uma paisagem repulsiva" (Gonçalo Ribeiro Teles).

A agricultura intensiva, os eucaliptos e as casas e prédios construídos no último meio século constituem um exército invencível que invadiu, saqueou e ocupou o território, desregulando o seu carácter, a sua funcionalidade e a sua sustentabilidade.

Ora, dentro dos elementos que contribuem para este estado de coisas, e que são muitos, pouca gente se apercebeu, inacreditavelmente, de que um dos impactos mais violentos sobre a paisagem portuguesa, rural e urbana, é causado pela utilização da detestável telha-lusa. Para lá de ser utilizada em praticamente todas as casas novas, esta telha tem vindo a substituir de forma generalizada as telhas tradicionais, de que a de canudo é a mais comum. Desde Alfama, passando por Évora e continuando por todo o território nacional, Açores incluído, a praga desta telha não deixa recanto incólume. E também chega aos monumentos, o que é verdadeiramente escandaloso! Igrejas, palácios, casas nobres, tudo é vítima desta inqualificável situação. Neste momento, por exemplo, o Palácio das Necessidades está a ser alvo da dita substituição de telhas, e nem o facto da Comissão Nacional da Unesco estar sediada neste magnífico monumento serviu de alguma coisa. Há cerca de um ano, no Palácio Galveias, aconteceu o mesmo, tendo ficado partes do telhado com a telha antiga e partes com a telha moderna. Uma inqualificável cacofonia!

A telha-lusa tem vários pecados originais: cor avermelhada estridente; uniformidade cromática; design inestético; superfície anti patine.

A telha tem sido o elemento construtivo mais utilizado nas coberturas de casas ao redor do mundo. E, salvo raríssimas excepções, a ela esteve sempre associado um carácter mimético: imita na cor, no manchado e na forma orgânica a natureza em volta. O avermelhado estridente não existe na natureza, à excepção de ínfimas percentagens (flores e penas). Daí que no campo, por exemplo, os telhados de telha-lusa formem enormes placas de descontinuidade relativamente à natureza, autênticas feridas na paisagem, factores implacáveis de estridência e artificialismo. Também o encaixe destas telhas "finas e rígidas" em edifícios antigos "grossos e orgânicos" é totalmente dissonante.

A questão da cor e da configuração das telhas é algo que já foi, de há muito, identificado na maior parte dos países europeus como uma situação de suma importância. Quem já assistiu às reportagens sobre o Tour de France, na TV, em que com grande frequência são filmados planos vistos do ar, já reparou, seguramente, na encantadora unidade cromática dos telhados das povoações sempre com tonalidades acastanhadas, mosqueadas e suaves, semelhantes aos matizes e manchas da terra. Em Portugal, actualmente, as povoações vistas de planos elevados revelam a agressividade e rigidez da telha-lusa a gritar por entre o que resta da telha tradicional, criando uma evidente desestruturação e fealdade do conjunto.

Torna-se, pois, totalmente incompreensível o facto de em Portugal se permanecer irredutivelmente indiferente a esta grave situação de poluição visual, que muito afecta o nosso território, em contraste flagrante com o resto da Europa onde a regulamentação sobre as coberturas é, em geral, bastante estrita impedindo a proliferação de telhas dissonantes. Será que os arquitectos e as entidades responsáveis pelo património do nosso país também têm os sentidos embotados?

    

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