A Ulmeiro chegou ao ponto em que "não há volta a dar": é para fechar

A Livrarte, em Benfica, anunciou o seu encerramento definitivo, ao fim de anos a lutar para se manter à tona. José e Lúcia Ribeiro acreditam que o bairro passa bem sem uma livraria e que quem dará pela falta, serão os que nunca lá entraram por um livro.

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José doará alguns livros a associações culturais e outros já estão em liquidação total Enric Vives-Rubio
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Salvador é conhecido por todos na rua. "Se as pessoas lessem tanto como falam com o gato, estariamos bem", diz Lúcia Ribeiro Enric Vives-Rubio

A livraria de José e Lúcia Ribeiro continua igual a ela própria apesar de o tempo e os livros se irem acumulando. Salvador, o gato laranja, também por lá anda, ora dentro e fora, a cumprimentar a gente que cruza a Avenida do Uruguai, em Benfica. Há livros por toda a parte, espalhados desde a entrada até aos fundos do número 13, local onde se sediaram há mais de meio século, mas o acentuar da desarrumação no interior não agoira nada de bom. É que este pode bem ser o último ano de vida da Livrarte – a livraria que se confunde com a editora Ulmeiro e com a vida de José Antunes Ribeiro. Desta vez, para sempre.

A livraria, que é um misto de antiquário e alfarrabista, já por várias vezes esteve na iminência de fechar portas. Foi resistindo e lutando. Adaptando-se aos tempos em que as livrarias vão perdendo clientes. Mas, agora, diz um dos poucos livreiros que sobrevivem na cidade, chegou-se a um ponto em que “não há volta a dar”. A situação de instabilidade tem-se vindo a arrastar no tempo. José põe as coisas desta forma: “As livrarias fecham por não haver gente que queira ler livros”.

Numa secretária rodeada de livros que lhe vão chegando e aos quais quer “dar uma vista de olhos”, não vá valer a pena juntá-los à sua biblioteca, conta que “muita gente vai estranhar o encerramento, sobretudo em Benfica”, ainda que a maior parte da clientela seja de fora e que só tenha alguns clientes do bairro. Há uns anos, Marcelo Rebelo de Sousa esteve na livraria e o problema já era o mesmo. Após a visita, parecia que o negócio iria melhorar muito. As vendas aumentaram, alguns fregueses descobriram que tinham uma livraria na zona e, num mês, muitas caras conhecidas acorreram à loja, dando-lhe outra vida. “Um tipo fica na crista da onda, mas por pouco tempo. E depois há uma adesão sentimental que não se traduz em resultados práticos”. José pensa fechar até ao final do ano. Sobre o destino que dará ao labirinto de livros que lhe delimita os caminhos dentro da loja, ainda não tem uma ideia concreta. “É uma boa pergunta e eu tenho andado a fugir da resposta”.

Lúcia, de 74 anos, é quem vai tentando pôr ordem nos livros. E sempre que entra alguém, o primeiro sorriso é seu. “A Lúcia tem uma paciência infinita para as pessoas”, diz José. Mais do que livros, na Livrarte, sempre houve espaço para conselhos e desabafos. Alguns moradores entram há anos a fio na loja sem terem comprado um livro. Vêm para falar de doenças, dos problemas que têm e encontram no casal septuagenário os interlocutores ideias para os escutarem.  “A minha mulher devia ter sido assistente social. Ela exerceu uma acção social ao longo de todos estes anos absolutamente impressionante”, garante.

José Ribeiro destaca esse aspecto de interacção social como sendo algo que não se pode encontrar numa livraria de um centro comercial ou algo parecido. Há uma função social muito importante que não está necessariamente ligada ao consumo de livros. Está, sim, relacionada com o espaço e com a forma como as pessoas que gerem o estabelecimento interagem com quem está à sua volta. “Não é quantificável o número de antidepressivos que se venderam a menos devido à existência de espaços como este”. A maior parte das pessoas que vão lamentar o encerramento não eram clientes da livraria, diz, "mas vinham cá conversar, dar os bons dias, contar as suas vidas e lamentar-se das suas desgraças”.

É disso que José sentirá falta. Encara-se como um homem da província, habituado às suas coisas e gentes. “Não é impunemente que se está nisto praticamente há 50 anos”, diz ao PÚBLICO. Mas, simultaneamente, vive uma espécie de alívio. O livreiro explica que há um cansaço que se arrasta no tempo. “Não mata mas mói, e obviamente que chegar ao fim não é agradável. Há momentos em que as coisas são o que são”.

O mal disto tudo

O editor aponta o dedo ao ensino e à forma como a leitura é estimulada nas escolas como o resultado visível da atenção dada à literatura. O que lhe dá mais pena, confessa, é que, de vez em quando, ainda lhe entram miúdos pela porta que “vêm com prazer e que se entretêm à procura [de livros]”. Para José, a escola deveria ser o começo de tudo e não é. Para o ser, “duas condições indispensáveis”, como as apelida, deveriam ser intrínsecas aos professores. Que lessem e que compreendessem que o gosto da leitura está intimamente ligado à criação de um pensamento crítico “que acaba por ser decisivo para quem quer vir a escrever”. Mais que saber transmitir o gosto pela leitura, é preciso saber escolher livros que atraiam e não afastem o acto de ler. “Não é pelo facto de se falar com complexidade ou de se indicar livros difíceis que se cria o gosto pela leitura”, acrescenta.  

Para salvar a livraria, José equacionou mudá-la de sítio. “Tê-la noutro sítio da cidade seria uma possibilidade, mas para isso seria indispensável o apoio da câmara ou da junta”. Ao longo do tempo, têm havido alguns contactos mas as coisas pecam pela lentidão, afirma José. "A realidade quotidiana ultrapassa sempre a boa vontade”, acrescenta.

A metamorfose de uma livraria

Em mais de 50 anos de história, a livraria já foi discoteca, papelaria e galeria de arte. “Passou por tudo”, diz o livreiro. “Uma livraria, como as borboletas, ao longo do tempo, vai sofrendo metamorfoses”. E este momento, refere, é apenas mais uma parte da transformação. Para já, vai manter o Espaço Ulmeiro, a associação cultural, e quer dinamizá-la com clubes de leitura no Palácio Baldaia e outras actividades. Há também para breve um documentário que percorrerá toda a história do espaço e passará na televisão. Quanto ao encerramento da livraria como sendo o destino mais provável, encara-o o melhor que pode. “Não vamos reviver o Fahrenheit  451, o grande filme de Truffaut, e andar a memorizar livros para evitar a sua extinção. O livro, como objecto, consegue sempre sobreviver no meio de uma catástrofe”.

Os livros têm ciclos e vidas, e o que fascina José são essas vidas anteriores. Os locais por onde passaram e quem os leu. “Toda essa carga está nestes livros que tenho para aqui", diz. Prova da capacidade de sobrevivência dos livros é que, ainda hoje, lhe aparecem livros que ali foram vendidos noutros tempos. Não apenas edições da Ulmeiro, mas livros que ainda têm o ticket de venda da Livrarte. Para José, essa poderá ser a confirmação de que os livros são realmente eternos e que, mesmo que a Ulmeiro desapareça de Benfica, o seu legado estará eternamente assegurado.

Texto editado por Ana Fernandes

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