O estatuto do direito de oposição nas autarquias locais: “o medo de existir”?

Em Portugal, os direitos da oposição são reiteradamente desrespeitados pelos executivos municipais.

A ordem jurídica portuguesa é uma das poucas no mundo que, no plano das Autarquias Locais, adota um modelo em que o direito de oposição está consagrado na Constituição e é desenvolvido, também, por via de uma lei especificamente dedicada a esta matéria (a Lei n.º 24/98, de 26 de Maio). Esta foi uma lei que surgiu, por proposta do PS, num contexto de reforma e forte modernização das Autarquias Locais. Antes desta lei importa referir que a consagração constitucional de um direito geral de oposição no atual art. 114.º/2 da Constituição se ficou a dever, não a nenhum dos projetos de constituição dos partidos, mas ao trabalho de redação levado a cabo por Jorge Miranda no quadro da 5.ª Comissão da Assembleia Constituinte e que o seu alargamento ao plano autárquico só ocorreu, por proposta do PS, na revisão constitucional de 1989. Por seu turno, a opção pelo desenvolvimento complementar do direito de oposição por via de lei surgiu, circunscrita ao plano estadual e regional, na I Legislatura por proposta de Freitas do Amaral e do CDS.

A Lei n.º 24/98, de uma forma mais garantística que a Constituição, reconheceu a titularidade do direito de oposição (e de todos os direitos que o compõem) aos partidos políticos e aos grupos de cidadãos eleitores (em diante designados como GCE) que apenas estejam representados nos órgãos deliberativos das autarquias ou, no plano municipal, que, independentemente dessa representação, integrem o órgão executivo do município sem assumir qualquer pelouro (o que se justifica já que, nos executivos com maioria absoluta, as oposições sem pelouros acabam por ser tratadas pelo edil e pela sua vereação como meros “jarrões decorativos” aos quais, com frequência, são negados os mais básicos meios de ação e de controlo da força maioritária no executivo).

Esta lei confere aos titulares do direito de oposição o direito à informação (independentemente de qualquer requerimento) sobre o desenvolvimento dos principais assuntos de interesse público, o direito de consulta prévia relativamente às propostas dos respetivos orçamentos e grandes opções do plano, o direito de participação e o direito de depor. Prevê, ainda, a necessidade de apresentação obrigatória e publicação, pelo executivo, de um relatório anual de avaliação do grau de observância desta lei e dos direitos nela consagrados.

Todavia, apesar de todo este enquadramento ter trazido alguns avanços, na prática têm-se, também, verificado inúmeros casos de verdadeiro desprezo e descuido na aplicação desta lei, que fazem com que os direitos da oposição sejam reiteradamente desrespeitados pelos executivos. São exemplos desta situação os casos de ocultação de informações sobre matérias estruturantes (mesmo quando requeridas pela oposição), a negação do direito de consulta prévia aos GCE e a inexistência dos relatórios anuais ou a sua existência com um conteúdo sem qualquer espírito crítico.

Tal situação, aliada ao processo de descentralização em curso, exige que os partidos políticos representados na Assembleia da República aproveitem o contexto de reforma do poder local e apresentem (e discutam) propostas de reforma da Lei 24/98 que assegurem um maior respeito pelo seu conteúdo e um reforço da democracia local no nosso país, acabando de vez com um certo medo de existir que tem marcado a vigência desta lei. De resto, esta necessidade já foi assinalada por Albino Almeida, presidente da ANAM, em audição na Assembleia da República no âmbito da alteração da Lei das Finanças Locais.

Em meu entender são necessárias mudanças em três níveis. Primeiro, existem as mudanças clarificadoras, tais como a necessidade de assegurar que os GCE e os eleitos independentes tenham a titularidade plena de todos os direitos consagrados nesta lei. Segundo, existem mudanças que assegurariam uma consolidação, onde se inserem, por exemplo, a fixação de um prazo concreto para a prestação das informações no âmbito do direito à informação, o alargamento do direito de consulta prévia a outros assuntos estruturantes (tais como o exercício dos poderes tributários do município ou a revisão dos instrumentos de gestão territorial) e a consagração da obrigatoriedade de votação dos relatórios de avaliação nos órgãos deliberativos. Terceiro, existem mudanças que trariam um aprofundamento da democracia local e um maior pluralismo, onde se inserem a consagração de um princípio de representação proporcional quanto à composição das mesas dos órgãos deliberativos, a consagração da obrigatoriedade de as publicações periódicas e sítios das Autarquias Locais reservarem espaços à oposição, a criação de sanções para a violação desta lei, a criação de uma entidade administrativa independente que centralize as competências de interpretação e monotorização do cumprimento desta lei e a consagração de um direito de a oposição deter as condições adequadas para o exercício das suas funções (o que incluirá os meios básicos – como e-mail institucional –, mas também a garantia de gabinetes próprios e de assessoria técnica – que deveria seguir o modelo da UTAO, para se evitar uma lógica de jobs for the boys e de custos exorbitantes).

Note-se, porém, que todas estas mudanças exigem uma mudança de postura que assegure que os executivos autárquicos abandonam uma postura despótica e percebem a importância de se assegurar a participação da oposição na execução do consenso e que as forças da oposição conhecem os seus direitos e exigem perante os executivos, numa lógica de positivismo de combate, o seu cumprimento.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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