“Ter a bola é a forma mais bonita de mostrar a qualidade dos jogadores”

André David é o jovem treinador do Loures que, esta noite, defronta o Sporting na Taça de Portugal. O nome do adversário impõe respeito, mas a equipa não vai mudar um milímetro na sua forma de estar, promete

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André David, treinador do Loures Miguel Manso

Tourizense, Oliveira do Hospital, Bragança, Académico de Viseu, Gafanha e agora Loures. Com um percurso feito a pulso, e cinco dias depois de completar 33 anos, André David enfrenta esta noite o desafio mais mediático da sua carreira de treinador: a equipa do distrito de Lisboa joga com o Sporting, na Taça de Portugal (20h45, RTP1). Reconhece José Mourinho e Leonardo Jardim como grandes influências e não abdica da qualidade de jogo das suas equipas: “Podemos ter um jogar ‘rico’ numa equipa de ‘pobres’”, sublinha em entrevista ao PÚBLICO.

Este é daqueles jogos, como costuma dizer-se, em que não é preciso motivar os jogadores?

Sim, o mediatismo motiva, mas a equipa tem de trabalhar para continuar a consolidar a ideia com que chegámos ao clube. Temos que saber utilizar este jogo para rentabilizar o nosso trabalho. Vamos ter um adversário que é um dos maiores clubes nacionais, com um orçamento elevado. Queremos continuar a evoluir, tendo a capacidade, ousadia e atrevimento de sermos nós próprios, fiéis ao trabalho feito nestas semanas.

A motivação não virá do nome do adversário...

Se isso acontecer o caminho será errado. Se vamos focar-nos no mediatismo, esta semana andamos super contentes, e para a semana estamos completamente desligados do nosso principal objectivo. O campeonato é sempre o principal objectivo de uma equipa de um escalão secundário. Temos de nos focar no crescimento da equipa. Num desporto colectivo não há ninguém que se consiga destacar individualmente, só pelo rendimento colectivo.

Não haverá uma mudança de postura no Loures?

Nesta semana não iríamos mudar comportamentos, não nos podemos prostituir em termos daquilo que são as nossas ideias. Vamos tentar ser iguais a nós próprios. Gostamos de ter bola – por exemplo, no último jogo, contra o Torreense, tivemos 67% de posse. Com o Sporting também gostaríamos de o fazer, mas se calhar só acontece se o Sporting tiver menos um ou menos dois em campo. Vamos ter de manter o jogo equilibrado, reduzir espaços ao adversário, fazer com que o jogo esteja o mais tempo possível equilibrado e controlado, para não termos dissabores. Depois, vamos querer manter a bola e fazer aquilo que o adversário nos deixar.

Jogar fora de casa fará diferença?

De certeza absoluta que o nosso campo, por ser sintético, mais estreito e mais curto, iria trazer muitas dificuldades ao Sporting. O facto de nós conhecermos a cama onde nos deitamos é uma vantagem. Gostaríamos de ter outras condições, e este jogo serve para alertar as pessoas que o futebol do Loures não é só seniores. Há muitas crianças que precisam de condições condignas para crescer e evoluir. Temos um sintético que é fraco, e jogarmos fora daqui também se deve ao facto de as condições de trabalho que temos não serem condignas de receber um jogo de patamar profissional.

Chegou a Loures a meio de Setembro, com a época em andamento. O que o levou a aceitar?

Primeiro por ser um espaço diferente daqueles onde já tinha trabalhado. Trabalhei a norte e a centro, e quem nos conhece lá já sabe o que são as nossas ideias, o nosso padrão de jogo. Quando falamos de André David não podemos esquecer-nos que represento uma equipa técnica. Norte e centro já conhecem o nosso trabalho, esta foi a oportunidade no sul. O objectivo são os lugares de acesso ao play-off de subida. A equipa tem crescido de acordo com as nossas ideias. O grupo de trabalho é o que temos, nem adianta estar com lamentações. A nossa função é essa, fomos contratados para potenciar o que temos. Pela forma como a equipa trabalha, acredito que vai conseguir mais e melhores resultados em breve.

É uma situação desconfortável pegar numa equipa que foi construída por outro treinador?

É óbvio. E o essencial aqui nem é o facto de não ter sido construída por nós. O que preocupa é a falta daquele trabalho de pré-época, as cinco ou seis semanas em que conseguimos rentabilizar o tempo para chegar a uma forma de jogar que é a nossa imagem de marca. Neste caso, esse processo tem de ser feito em competição. E, sendo feito em competição, há coisas que tentamos apressar e não saem tão bem.

Começou a treinar muito jovem, aos 21 anos. O que o atraiu na altura?

Ainda sou da geração que sonhava ser jogador de futebol. Eu era guarda-redes, portanto via o jogo de trás, coordenava o que se passava à minha frente, e muito cedo percebi que gostava de ser treinador. Só entrei para o curso de Desporto para ser treinador. Fui jogando para ganhar uns trocos para estudar. E, quando pude, dediquei-me única e exclusivamente ao treino. A minha qualidade não era de excelência e não era compatível jogar e treinar. Fui desenvolvendo o ADN que um treinador tem, a partir de várias coisas, o ensino, aquilo que fui como jogador, aquilo que sou como adepto de futebol e amante do jogo. Comecei aos 21, mas aos 23 dediquei-me só ao treino.

Que ADN é esse?

Gostamos de um jogo mais curto, mais apoiado, ligado desde o guarda-redes à frente, com a equipa a chegar junta ao ataque e a ter uma reacção forte à perda. Procuramos ter uma equipa controladora e dominadora. O jogo de futebol faz-se com bola, e tê-la é a forma mais bonita de mostrar a qualidade individual dos jogadores. Mas o objectivo é ganhar, e os resultados é que validam as ideias. Jogar bonito e perder não é jogar bem, é jogar mal. O processo é que tem de levar ao resultado. Não é falta de modéstia, mas neste percurso todo ganhámos muito mais vezes do que perdemos. Isso valida a nossa ideia e dá-nos confiança que este é o caminho certo.

Por que não há mais equipas a jogar assim?

Não há formas boas nem más, há resultados que validam uma determinada forma de jogar. Não há treinadores que joguem bonito, não ganhem a ninguém, e tenham sucesso. Há os que jogam bonito e bem, com uma determinada ideia que dá resultado e ganha jogos. E há quem jogue bonito mas não ganha. Cada um é fiel à sua ideia e os resultados desportivos falam por si. Mas continuo a achar que podemos ter um jogar “rico” numa equipa de “pobres”. Um jogo mais elaborado, numa equipa com jogadores menos bons tecnicamente. Naturalmente pode trazer alguns dissabores, mas se ganharmos mais vezes vai ajudar a maturar essa ideia de jogar.

Jogar bonito é também uma forma de atrair pessoas aos estádios?

Acho que temos essa responsabilidade, de contribuir com um jogo que leve pessoas ao estádio. Não seremos só nós, treinadores, responsáveis por isso, mas temos essa obrigação. Dar uma qualidade de jogo que leve pessoas a deslocar-se ao campo para ver.

Está no sexto clube da carreira como treinador principal de seniores. Que diferenças há entre o André David actual e aquele que dava os primeiros passos como treinador?

Muitas, a vários níveis. Cresci bastante e mudei em termos de perfil, de liderança. Era um jovem com 26 anos quando comecei no Tourizense, irreverente, muito emotivo. Vivia muito o jogo. Agora sou mais consciente do trabalho, também porque temos mais recursos. A equipa técnica mais completa que eu tive é a que trabalha agora comigo. Preenche todas as áreas e trabalha de forma mais organizada.

Essa forma muito intensa de viver as coisas nunca o fez, em algum ponto, precisar de desligar?

Amo o que faço e pagam-me. Tenho essa sorte. Mas, por outro lado, há uma pressão psicológica que faz com que a nossa cabeça esteja permanentemente a carburar. Se ganhamos um jogo ficamos com boas sensações, se perdemos é a azia, fico doente. Antes ficava doente a semana toda, até sexta-feira aquilo não passava. E, no final de época, as decisões: há clube ou não há, renovar ou não renovar, contratações...

Já teve uma experiência na II Liga, em Viseu, mas voltou ao terceiro escalão. Fazia alguma coisa diferente, se pudesse?

Se eu mudava muita coisa nos sítios onde tive sucesso, nos sítios onde não tive tanto sucesso, que foi só em Viseu, felizmente, mudaria muito mais. Serviu para reflectir sobre uma série de coisas que eu fiz de mal, outras que faria de outra maneira, e essencialmente para prevenir uma série de problemas com que aprendi a lidar. É uma etapa muito positiva em termos de crescimento e maturidade enquanto treinador, mas é uma etapa negativa em termos de rendimento desportivo. Serviu para crescer. Há a tendência de olhar para treinadores que tiveram um início de carreira ascendente, sucesso atrás de sucesso, mas a maior parte do percurso dos treinadores é de insucesso. É isso que faz com que se reeduquem e apareçam mais preparados. Não me preocupa ter sido despedido, porque voltei mais preparado, mais capaz, e com a certeza absoluta que vamos lá chegar novamente, à II Liga e depois à I Liga.

A sua carreira tem sido construída a pulso. Por opção sua?

Fui fazendo o meu percurso, evoluindo, e tendo a sorte de ter uma ou outra oportunidade. Todas as experiências contribuíram para o nosso crescimento. Temos vindo de trás para a frente, degrau a degrau. É mais difícil, mas é um caminho como outro qualquer. Queremos chegar à I Liga, acreditamos que isso vai ser possível. Quando e como, não sei. Vamos caminhando para estarmos preparados quando a oportunidade surgir.

Em algum momento sentiu que a sua idade era um obstáculo? Por exemplo, na relação com dirigentes ou jogadores?

Ser jovem nunca foi entrave. Em grande parte dos clubes tive jogadores da minha idade ou até mais velhos. E também não foi no trato com os meus presidentes. Com o aparecimento do José Mourinho e de outros treinadores mais novos, há uma maior abertura para treinadores jovens entrarem no mercado a nível nacional. Há mais velhos, há mais novos, há antigos jogadores, há malta que vem das universidades. A competência está em todo o lado.

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