Janela com vista para neurónios humanos no cérebro de ratinhos

Investigadora portuguesa faz parte da equipa de cientistas que desenvolveu um novo modelo animal para o estudo de doenças do neurodesenvolvimento. A primeira experiência já deu pistas sobre a actividade neuronal nos casos de síndrome de Down.

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Vasos sanguíneos (magenta) e células humanas transplantadas (verde) DR

Através de uma “janela” de vidro aberta no crânio de ratinhos, uma equipa de cientistas conseguiu observar o desenvolvimento de neurónios humanos obtidos a partir de células estaminais. O novo modelo de estudo in vivo poderá ser útil para a investigação de várias doenças do neurodesenvolvimento. Na primeira experiência foram comparadas células de indivíduos saudáveis e com síndrome de Down e observados padrões de actividade distintos que podem ajudar a perceber melhor esta anomalia genética. O artigo foi publicado na revista Science e tem como primeira autora a investigadora portuguesa Raquel Real, do Imperial College de Londres, no Reino Unido.

A equipa de cientistas transplantou neurónios humanos para o córtex de ratinhos e depois criou uma janela no crânio dos animais para ver o que acontecia nos seus cérebros. “Substituímos uma pequena parte do crânio por um vidro, que nos permite fazer microscopia com o animal vivo durante muito tempo”, conta Raquel Real. A descrição é impressionante, mas esta estratégia fornece um precioso novo modelo de estudo que agora pode ser usado para estudar uma série de alterações que afectam a saúde humana.

A investigadora afiliada ao Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar (ICBAS), na Universidade do Porto, participou neste trabalho no âmbito do doutoramento que está a fazer no Imperial College de Londres. A investigação, com orientação de Vincenzo De Paola, apresenta um novo modelo de estudo experimental que alia a possibilidade de assistir à actividade neuronal in vivo às recentes tecnologias de microscopia que permitem observações ao mais ínfimo detalhe. “Outros grupos de investigação já tinham transplantado neurónios humanos em ratinhos, mas esta foi a primeira vez que foi utilizado um tipo de microscópio de alta resolução [chamado microscopia de dois fotões], para observar estas células ao longo do tempo no animal vivo”, explica Raquel Real ao PÚBLICO. Este microscópio, acrescenta, além de permitir observações de imagens in vivo, “também permite ver as células individuais, incluindo estruturas subcelulares, como as sinapses, que são as estruturas através das quais os neurónios comunicam entre si”.

O recurso a uma janela craniana para fazer microscopia in vivo com um microscópio de dois fotões já é utilizado há vários anos. No entanto, as experiências realizadas até agora com transplante de células humanas em ratinhos culminavam numa análise post mortem, ou seja, só depois de sacrificar o animal se observava o que tinha acontecido às células. “Esta é a primeira vez que as duas técnicas são combinadas para visualizar in vivo células humanas transplantadas no ratinho, ao longo de meses”, esclarece Raquel Real.

Uma vista especial

Mas então o que é que mostrou a janela com vista para neurónios humanos no cérebro de ratinhos vivos? Recuando um pouco, o primeiro passo foi obter neurónios humanos diferenciados a partir de células estaminais pluripotentes, células produzidas a partir de células adultas. Neste caso foram usados fibroblastos, conseguidos a partir de uma biópsia da pele, que foram cultivados de forma a “regredir” para um estado mais primitivo de desenvolvimento, a ponto de poderem ser diferenciadas em qualquer tipo de célula do organismo. O objectivo era criar neurónios humanos, que foram desenvolvidos por investigadores da Universidade de Cambridge (Frederick Livesey e Manuel Peter) que colaboraram neste estudo. Passo seguinte: transplantar estes neurónios para o córtex de ratinhos adultos.

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Astrócitos humanos (verde) e núcleos de células humanas (magenta) DR

“Os neurónios foram instruídos a expressar proteínas fluorescentes que foram artificialmente introduzidas no seu genoma, para os podermos monitorizar no microscópio ao longo do tempo”, adianta Raquel Real. Com a janela aberta no crânio, foi então possível acompanhar o desenvolvimento destes neurónios humanos durante cinco meses, o que corresponde à fase do desenvolvimento fetal inicial. O facto de as células transplantadas se encontrarem no cérebro dos ratinhos permitiu que se pudessem desenvolver melhor do que em cultura, “pois tinham todo o suporte nutritivo e de factores secretados pelas células do hospedeiro”. Raquel Real nota que “muitas doenças humanas são estudadas em modelos animais, mas muitas vezes esses modelos não reflectem bem os fenómenos biológicos humanos, daí a importância de usar células humanas no estudo de doenças humanas”. O sistema usado traz assim, explica, vantagens para o estudo de “eventos celulares dinâmicos em neurónios humanos, o que só se podia fazer até agora em cultura, com as limitações que isso acarreta”.

Uma parte do estudo consistiu em comparar o desenvolvimento de células de indivíduos saudáveis com células de indivíduos com síndrome de Down. Os neurónios humanos transplantados continuaram a crescer e a amadurecer in vivo, num ambiente semelhante ao córtex fetal humano. As células normais produziram neurónios que integraram e desenvolveram redes sinápticas com uma actividade neuronal padrão.

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Neurónio humano imaturo em desenvolvimento no cérebro do ratinho DR

“O que observamos foi muito interessante – os neurónios provenientes de células de pessoas com síndrome de Down formaram conexões com outros neurónios que eram mais estáveis (isto é, menos plásticas) do que os neurónios provenientes de células de indivíduos saudáveis”, diz Raquel Real. Alem disso, resume a investigadora, “estes neurónios eram também menos activos e comunicavam entre si de forma menos coordenada”.

No artigo, os cientistas referem que, ao implantar células estaminais humanas no cérebro de ratinhos adultos vivos, foi possível ter acesso a detalhes sobre os primeiros estágios do desenvolvimento do cérebro em indivíduos com síndrome de Down. “A maioria dos estudos celulares no cérebro humano está restrita a tecidos post mortem, o que impossibilita a observação directa do desenvolvimento de neurónios e redes neuronais. Como tal, modelar muitas das doenças incuráveis que afectam o cérebro em desenvolvimento, como a síndrome de Down, representa um desafio”, refere um resumo do artigo publicado na Science.

Assim, explica Raquel Real, nos animais usados como controlo foi possível observar um padrão de actividade neuronal em que “as células tinham ‘descargas eléctricas’ muito sincronizadas entre si (um padrão previamente descrito noutras espécies durante o desenvolvimento normal do cérebro), mas isso estava ausente na síndrome de Down”. Os resultados levam os cientistas a defender que a ausência deste padrão actividade “tem um impacto negativo no desenvolvimento das ligações normais do cérebro e poderá estar a contribuir para os sintomas cognitivos das pessoas com síndrome de Down”. Nos cérebros dos ratinhos com células de pessoas com síndrome de Down, os neurónios cresceram normalmente, mas “exibiram uma reduzida plasticidade sináptica e menor actividade de rede, uma descoberta que sugere um possível papel da actividade padronizada na regulação da vida sináptica no desenvolvimento inicial”, referem os autores do estudo.

Sim, o padrão está alterado nas pessoas com síndrome de Down, mas falta saber como tudo isso se processa antes. Esse é o passo seguinte. “O que gostaríamos de estudar a seguir é o mecanismo que faz com que a actividade das células das pessoas com síndrome de Down esteja alterada, pois se percebermos o mecanismo abre-se a possibilidade de, no futuro, podermos intervir precocemente para evitar estas alterações”, refere Raquel Real.  

Mas a partir desta janela com vista para o cérebro de ratinhos abrem-se outras portas. A investigadora acredita que este modelo de estudo será útil para investigar doenças do neurodesenvolvimento, de uma forma geral. Mas arrisca, desde já, um exemplo em particular, o autismo. “Sabe-se que o autismo está associado a alterações da plasticidade sináptica e com esta técnica conseguimos fazer imagens das estruturas sinápticas in vivo, e inclusivamente fazer correlações com a função ou actividade neuronal.”

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