Discreta, mas teimosa: o primeiro dia do resto da vida de Lucília Gago

Esta sexta-feira toma posse a nova procuradora-geral da República. Mesmo no Ministério Público há muitos que não a conhecem. Talvez por isso, há quem esteja expectante com o futuro. Quem já trabalhou com ela não lhe poupa elogios. Competente, séria e determinada são apenas alguns.

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Aos 62 anos e com 38 anos de Ministério Público, Lucília Gago torna-se procuradora-geral da República DR

Gosta pouco de holofotes e talvez por isso mesmo seja uma desconhecida de muitos dentro do Ministério Público. Quem já trabalhou com a nova procuradora-geral da República, que toma posse nesta sexta-feira, destaca-lhe a competência, a sensatez e a determinação. Reservada e formal, tem fama de ter mau feitio. Mas os amigos dizem que se trata de um equívoco fruto da sua frontalidade, por vezes mal recebida. E não poupam nos elogios. O defeito que mais lhe atribuem: a teimosia.

A sua escolha deixou, contudo, alguns colegas expectantes quanto ao futuro. Especialmente, justificam, porque, apesar de ter 62 anos e de ser procuradora há 38 anos, não lhe são conhecidas posições públicas sobre qual deve ser o papel do Ministério Público, a relevância que dá à autonomia destes magistrados ou como entende as competências do Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), órgão de tutela e disciplina a que preside por inerência.

Por isso, alguns consideram essencial conhecer quem vai escolher para vice-procurador-geral da República e quem indicará – a decisão de nomeação é do CSMP, que tem 19 membros – para cargos importantes do Ministério Público (MP), que dirige todos os inquéritos-crime em Portugal. Neste rol está, por exemplo, o cargo de director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal, a unidade onde desaguam os casos mais complexos e violentos do país, actualmente liderado por Amadeu Guerra, que termina a comissão de serviço no primeiro trimestre do próximo ano. Foi aqui que se investigou a famosa Operação Marquês e é neste departamento que estão ainda em investigação casos sensíveis como o desaparecimento de armas da base militar de Tancos e o colapso do Banco Espírito Santo.

Média final: 13 valores

Mas recuemos ao passado. Lucília Maria das Neves Franco Morgadinho Gago nasceu a 26 de Agosto de 1956, em Lisboa, no seio de uma família da classe média alta com um outro filho. Estudou Direito na Clássica de Lisboa, onde terminou o curso em 1978, com média final de 13 valores.

Em Setembro de 1980, ainda com 24 anos, conseguiu entrar no concorrido Centro de Estudos Judiciários (CEJ), uma escola recém-criada para formar magistrados. Integrou o primeiro curso especial de procuradores, que encolheu para nove meses a formação: três de aulas e seis de estágio nos tribunais. O objectivo era dar uma resposta rápida à falta de procuradores, resultante de uma debandada de muitos para o sector privado, recorda a procuradora Maria do Céu Beato, que integrou o mesmo curso.

Dos cerca de 60 candidatos que fizeram a formação, haveria 14 ou 15 mulheres. “As mulheres só começaram a entrar nos tribunais em 1978. E no meu curso eram todas muito sensatas”, avalia Maria do Céu Beato, que se recorda de Lucília Gago como uma das melhores alunas.

Deste grupo fazia igualmente parte Raquel Desterro, a actual procuradora-geral distrital do Porto, que se tornou amiga da nova procuradora-geral. Deslocada de Coimbra, onde então vivia, Raquel Desterro recorda a disponibilidade da então colega que lhe abriu as portas da sua casa e a acompanhava ao cinema ou ao ballet. “A mãe era uma senhora com dotes culinários fabulosos, que a filha herdou”, garante a procuradora distrital.

Mas não é isso que quer destacar. E desenrola um cardápio de elogios. Garante que a amiga é “competentíssima” e sublinha-lhe igualmente a integridade e sensatez. Pragmática, determinada e independente são adjectivos que também usa. “Nunca se filiou num partido nem se sindicalizou”, exemplifica.

Caso diferente é o do marido, Carlos Gago, igualmente procurador mas já aposentado, que foi militante da frente maoista do MRPP quando frequentava a Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. A mesma escola onde mais tarde Lucília, seis anos mais nova, viria a entrar. É, no entanto, no CEJ, onde Carlos Gago chega já divorciado e com uma filha, que o casal começa a namorar.

Nessa altura, o pai de Carlos, um solicitador de Almodôvar com o mesmo nome, já era presidente da câmara local, eleito nas listas do Partido Socialista. O mesmo partido que governava quando quase década e meia mais tarde, em Dezembro de 1995, o marido de Lucília Gago é nomeado para director-geral adjunto da Polícia Judiciária, quando o juiz Fernando Negrão – hoje líder parlamentar do PSD – liderava a instituição policial. Era então ministro da Justiça Vera Jardim e primeiro-ministro António Guterres.

Ódio aos holofotes

Carlos e Lucília casam-se já ambos eram procuradores e tiveram dois rapazes, que rondam actualmente os 30 anos, um médico e outro economista. Raquel Desterro reconhece que Lucília Gago é reservada e preza muito a sua intimidade. “Detesta estar debaixo de holofotes”, afirma a amiga. “É uma pessoa discreta. Vai falar muito menos do que a sua antecessora”, antecipa um outro procurador, que prefere manter o anonimato.

Então porque aceitou um dos cargos mais importantes da Justiça, que implica necessariamente alguma exposição pública? “É uma pessoa com grande espírito de missão”, justifica Euclides Dâmaso, procurador-distrital de Coimbra, amigo do casal. “É uma pessoa trabalhadora, séria e muito motivada”, resume. E acrescenta: “As melhores expectativas são legítimas.”

Lucília Gago viveu praticamente toda a sua vida em Lisboa, cidade onde fez a sua carreira. Foi avaliada em 1989, pela primeira de três vezes. A nota foi sempre a mesma: Muito Bom. Em 1994, foi promovida a procuradora da República (a segunda de três categorias existentes). Foi já nessa qualidade que passou pelas Varas Criminais de Lisboa e pelo Departamento de Investigação e Acção Penal de Lisboa, onde coordenou a 9ª. Secção, especializada na criminalidade económico-financeira.

Foi nesta altura que assumiu um dos poucos casos mediáticos que lhe terão passado pelas mãos, fruto, em grande parte, da sua opção por se especializar na área de família e menores. Falamos da investigação às  viagens-fantasma dos deputados, um conjunto de esquemas através dos quais o Parlamento terá sido lesado por dezenas de deputados em cerca de dois milhões de euros na segunda metade da década de 80. Entre os parlamentares implicados na altura estavam Luís Filipe Menezes, Duarte Lima e Miguel Macedo.

A complexidade da investigação e a demora no apuramento dos factos – havia meia centena de suspeitos – fez prescrever a grande maioria dos casos, muito embora mais de duas dezenas de deputados tenham sido acusados por Lucília Gago e pelo colega Pedro Verdelho.

Entre 2002 e 2005 foi procuradora coordenadora no Tribunal de Família e Menores de Lisboa, por onde passara antes Joana Marques Vidal. Em 2005 é promovida ao topo da carreira, passando a representar o Ministério Público na Relação de Lisboa até 2012 – por delegação da procuradora-geral distrital. É aí que se cruza com a actual ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, que assume a Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa em 2007 e a mantém como coordenadora da área de família e menores.

Nesse período representa a PGR na Comissão Nacional de Protecção de Crianças e Jovens, então presidida por Armando Leandro. O juiz caracteriza-a como “uma pessoa muito competente e muito generosa” e destaca-lhe o “elevado sentido de dever público” e a “grande lealdade com quem trabalha”. É o caso do procurador Sérgio Pena, com currículo no combate à corrupção, a partir de hoje seu chefe de gabinete no Palácio Palmela.

Personalidade forte

Lucília Gago sai da distrital de Lisboa, em 2012, para assumir funções de coordenadora da área de família, no Centro de Estudos Judiciários, onde dá aulas até 2016. O procurador Pedro Branquinho Dias cruzou-se com ela em vários júris que avaliaram os candidatos a magistrados e guarda a melhor das impressões da colega que presidia ao painel. “Tem uma personalidade forte. É uma pessoa com capacidade de ouvir, mas tem opiniões muito fundamentadas e muito firmes”, descreve. Desse tempo não esquece um gesto simpático. “No último dia das reuniões levava sempre um bolinho caseiro para confraternizarmos no fim”, conta Branquinho Dias.

Em 2014, o então ministro da Segurança Social, Pedro Mota Soares, convidou-a para coordenar a comissão técnica de revisão da lei da adopção. O democrata-cristão não a conhecia, mas ficou seu fã. “Fiquei com grande admiração por ela, entre cujas qualidades destaco o bom senso e a capacidade de estabelecer consensos. É muito serena, muito bem preparada e com capacidade de fazer as coisas mudarem”, considera. Há quatro anos, numa audição parlamentar sobre o tema da adopção, mostrava-se crítica daquilo que considerava ser uma característica dos portugueses: “Temos alguma propensão marginal para a inutilidade, apostamos naquilo em que não vale a pena apostar.”

 O juiz Paulo Guerra, director adjunto do CEJ, sublinha-lhe o “rigor científico incontestável” e fala igualmente numa qualidade que nem todos conhecem. “Escreve excelentemente, com um escorreito uso da língua portuguesa que é um gosto ler...”, elogia. Garante ainda que Lucília Gago é muito organizada, metódica e sociável.

É do CEJ que Lucília sai para dirigir o DIAP de Lisboa, onde ficou apenas dois anos. Vários colegas garantem que não saiu em ruptura com ninguém, mas que apenas aceitara ficar transitoriamente no lugar até a procuradora Fernanda Pêgo, que fez grande parte da carreira naquele departamento, subir ao topo da hierarquia do MP e assim reunir condições para ocupar o lugar. Sai do DIAP directamente para um novo gabinete na PGR, criado por Joana Marques Vidal, para coordenar a área de família e menores. E na procuradoria se deverá manter nos próximos seis anos, agora num novo gabinete.

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