A censura da omissão e a agrura do boato

Em liberdade, não há lápis azul, mas há esta poderosa forma de censurar, num aparente jogo democrático de escolhas.

Com o 25 de Abril, percorremos já 43 anos sem o “lápis azul” da censura. Recordo-me de, com 14 anos, ir mensalmente a casa de um senhor bem vestido e, ao que me lembro, coronel, numa rua perto daquela em que vivia em Ílhavo, para que lesse e visasse quatro inofensivas e ingénuas folhinhas de um “jornal” então chamado Giboia, de que eu era o “director”. Uma publicação de pequenos textos de um grupo de amigos e de notícias sobre o nosso desporto, na altura o andebol.

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Todavia, com o tempo, surgiu, sorrateira, uma forma censória não consagrada em lei. Refiro-me à omissão, mais ou menos deliberada, mais ou menos selectiva. Em liberdade, não há lápis azul, mas há esta poderosa forma de censurar, num aparente jogo democrático de escolhas, não escrutinável quanto à decisão (e decisor) da omissão. O silêncio que transporta é, não raro, uma forma sibilina de esconder, suprimir, reduzir o que se passa.

Na sociedade de informação, o que não é noticiado ou divulgado não existe. E, pelo contrário, o que não existe, mas é amplamente espalhado, passa à categoria de facto, sem necessidade de evidência. Nessa matéria, há até mestres e agências especializadas... A omissão deliberada ou consentida tem-se revelado cirurgicamente como uma forma perversa de “fazer notícias” ou “alinhar noticiários”. E nem se pode falar de falta de espaço ou de tempo, num tempo de jornais online sem limite e de jornais televisivos de hora e meia.

Estamos num tempo em que é ténue a fronteira entre a verdade e a mentira, entre a invenção e a omissão. Em que a verdade factual é suplantada pelas múltiplas formas da mentira: a meia-verdade, a notícia falsa, o rumor, a dilação, o exagero, a quimera, a publicidade encapotada, a ilusão, a insinuação, a manipulação, a agora chamada pós-verdade e outras formas capciosas de abastardar a factualidade, na “magia” de se dividir a verdade para multiplicar a mentira.

Há mais informação, a notícia corre célere, a imagem documenta até em excesso, e, todavia, também o boato e o rumor florescem, a cada instante, em toda a parte, tornando-se uma espécie de nova especiaria comportamental de organizações ou de pessoas mal com a vida e carentes de algo que lhes quebre o círculo rotineiro pelo qual se deixam aprisionar.

Ilustro estas considerações com dois assuntos surgidos nas últimas semanas. O primeiro é um monumento à omissão. Realizou-se no Porto uma conferência internacional com intervenientes que contestam o predomínio da influência humana nas alterações climáticas, tendo a geógrafa portuguesa responsável pela organização defendido que, apesar de não negar a existência das alterações climáticas, a acumulação de CO2 na atmosfera não é o seu motivo fulcral, até porque – disse – “é uma pequeníssima parte dos gases na atmosfera e a maior parte nem é produzido pelos humanos”. Sobre o que se passou no evento, quase nada soubemos. A excepção foi este jornal. Ao invés, foi sistematicamente noticiado o repúdio de cientistas protestando contra a realização desta conferência. Nos mesmos dias, realizou-se a Marcha Mundial do Clima, amplamente noticiada em Portugal embora com escassa presença por cá.

Pessoalmente, tendo a concordar com a predominância dos efeitos da acção do homem nas alterações climáticas, mas sempre tenho a curiosidade e o interesse em ouvir opiniões divergentes. “Há quem pense que já sabe tudo e por isso não precisa de aprender nada”, disse a geógrafa citada. O progresso não é compatível com o unanimismo forçado e com a omissão do que não se enquadra no pensamento instalado. A omissão é, não raro, a arma da incompetência.

O outro caso é mais um da avalancha de boataria e de infâmia alimentada pelas redes sociais. No próprio dia em que foi conhecida a nova PGR Dra. Lucília Gago, surgiu, profusamente, uma fotografia de um encontro quando José Sócrates saiu da prisão e em que – suponho – se viam amigos e familiares, entre os quais uma pessoa do sexo feminino. Eis que alguém se lembrou de pôr a circular aquele momento com a legenda “adivinhem quem é a única mulher na foto? A nova procuradora!”. O incrível é que a ignomínia se espalhou virulentamente, reencaminhada, como agora é recorrente, por meio-mundo, de um modo completamente acéfalo, amoral, preguiçoso e irresponsável. Mais um boato que medra no anonimato e na perversão da (a)responsabilidade, com o ímpeto que resulta de ser informe, insidioso, larvar. O problema é que o seu desmentido perde no confronto, porque, ao contrário do rumor, tem de ser rigoroso na forma e exigente na substância. O boato é o mensageiro sem rosto da falsidade, da insinuação torpe, da meia-verdade. Na sua origem latina, boatus, significa um grito forte. Não nos decibéis, mas na sua capacidade de auto-reproduzir-se. Veja-se o que por aí vai nas redes sociais, onde se junta o progresso social do seu benefício com o retrocesso ético do seu malefício. A Internet deu voz aos imbecis, já dizia Umberto Eco.

Ah, quase me esquecia... Quer a omissão, quer o rumor têm, quase sempre, a companhia de um qualquer “alegadamente”.

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