Marcelo tem carradas de razão

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1992 foi o ano em que o Governo em funções, chefiado por Aníbal Cavaco Silva, proibiu um livro de José Saramago — O Evangelho segundo Jesus Cristo — de ser candidato do país ao Prémio Europeu de Literatura. A decisão primeira coube ao então secretário de Estado da Cultura, António Sousa Lara — mas foi naturalmente e em última instância da responsabilidade de Cavaco Silva, que até costumava reduzir os secretários de Estado à condição de “ajudantes” de ministros.

Sousa Lara não estava, pelo menos há dois anos, minimamente arrependido. Quando foi condecorado pelo Cavaco Presidente com a Ordem do Infante D. Henrique — um mês antes de o ex-Presidente da República abandonar o cargo —, Sousa Lara voltou a defender a escolha que fizera 24 anos antes. Citado pelo Diário de Notícias, disse o seguinte: “Um Governo tem uma conotação ideológica, não tem de agradar a toda a gente (...). É um Governo de maioria contra a minoria, em última análise. Toma medidas polémicas que, democraticamente sufragadas, têm de ser aceites.”

Perante esta situação de “arrependimento zero” de uma das decisões mais bizarras de um Governo perante um dos grandes escritores, o que ontem disse Marcelo foi apenas de uma sensatez óbvia. Ao participar numa sessão das comemorações dos 20 anos da atribuição do Nobel, o Presidente disse: “Nesse dia [era 1998 e Marcelo era líder do PSD] atravessei uma praça madrilena para ir dar um abraço a José Saramago, pondo assim fim àquilo que era uma falta de senso e falta de gosto ao mesmo tempo, em termos de vivência da sociedade portuguesa.”

Marcelo tem carradas de razão. É verdade que relembrar este momento negro da história portuguesa é uma bofetada de luva branca em Cavaco Silva, que recentemente criticou Marcelo pela não recondução da procuradora-geral da República e levou resposta. Mas independentemente da conjuntura, o Estado não deve esquecer, nas cerimónias dos 20 anos do Nobel, o absurdo de um comendador da Ordem do Infante D. Henrique e de quem o condecorou.

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