Uusimaa: a Finlândia mais doce e mais verde

Esta região do Sul, Nyland para os suecos, transforma a imagem que temos do país, com as suas grandes extensões de neve, o frio, a terra do Pai Natal e a Lapónia. Neste pedaço de costa, atravessado pela Estrada do Rei, descobre-se uma Finlândia com uma luz especial.

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Kjell Svenskberg
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O arquipélago e a região costeira do sul da Finlândia estão tão próximos do meu coração.

Por instantes, instala-se um silêncio que não ouso interromper. Ville Vuorelma, responsável pelo turismo de Raseborg, ajeita os óculos e afasta a franja que teimosamente lhe cai para a testa como se, com estes gestos, desejasse de igual forma expulsar uma certa melancolia que ameaçava preenchê-la.

- Penso que a história, o passado, e o presente se confundem no município de Raseborg. Temos, por exemplo, um dos mais rápidos cabos de dados e, ao mesmo tempo, um grande número de edifícios históricos onde as ligações à Internet são usadas.

Mas Ville Vuorelma, pousando um olhar no vazio, parece apreciar outros tempos.

- Tenho tão gratas memórias de ir pescar com os meus pais na baía da Finlândia e de nadar até às ilhas próximas, de desfrutar o dia todo.

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O fumo da neblina desprende-se sinuosamente das árvores e os raios de sol oblíquos insinuam-se por entre os ramos, fazendo brilhar as folhas com as suas cores outonais que por esta altura já formam um tapete na terra ainda húmida. Subo até ao topo de uma suave colina e por ali fico, colonizado por tanta beleza harmoniosa, vendo as nuvens reflectirem-se na corrente serena do rio e, mais para a minha direita, as ruínas de um castelo abraçado pela vegetação.

Construído em 1370 sobre um rochedo em tempos rodeado por água, o castelo de Raseborg (Raasepori em finlandês) começou por abrigar um centro administrativo durante a Idade Média mas, devido à sua localização estratégica, rapidamente se transformou num posto de controlo do transporte e do comércio no Golfo da Finlândia.

Um pássaro risca o céu e vem pousar ao meu lado, desviando o centro da minha atenção.

Regresso ao castelo e à sua história tão ligada ao poder do rei da Suécia na Finlândia. Apenas superado em importância pelos castelos de Turku e Vyborg, Raseborg viveu um tempo de esplendor entre 1450 e 1460 e um outro, tumultuoso, no início do século XVI, com as constantes disputas entre dinamarqueses e suecos. Conquistado, finalmente, pelos homens do rei Gustavo Vasa, o castelo, com as suas estruturas profundamente abaladas face ao cerco e às batalhas de que foi palco, vivia sob a ameaça de um abandono que tardou em consumar-se.

Um grande número de artesãos tratava de o manter de pé e o elevado consumo de cerveja motivou mesmo a criação de uma cervejeira no interior das suas paredes.

Em contraste, o nível das águas do mar à volta do castelo começara a declinar, hipotecando, em definitivo, a sua posição estratégica de defesa — e, por isso, a despeito das obras de renovação, o rei decidiu criar um novo centro administrativo, económico e militar em Helsínquia, uma ideia que nunca chegou a ser posta em prática porque a actual capital do país rapidamente desiludiu o soberano ao ponto de este regressar a Raseborg.

Mas não por muito tempo.

Ao fim de dois anos, em 1558, com o castelo em ruínas, com o colapso das caves, fechava-se um ciclo de vida e o centro do poder mudava-se para Ekenäs (Tammisaari em finlandês). Durante três séculos, Raseborg esteve entregue à sua solidão, deixou-se envolver cada vez mais pela vegetação, até que, já no início do século XIX, as suas ruínas, as suas pedras com tantas histórias para contar, começaram a atrair o olhar dos turistas.

Raseborg conheceu quatro fases de recuperação, a última das quais em 1988, altura em que adquiriu a face que hoje se lhe conhece para se tornar numa das maiores atracções da região, especialmente durante os meses de Verão, quando recebe eventos medievais, concertos de música ou performances de teatro.  

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Johan Ljungquist

Ao longo do trilho dos amantes

Deixo Raseborg para trás e percorro agora, pelo meio do silêncio e de frondosa vegetação, o cénico trilho dos amantes que me conduz, ao fim de alguns minutos, a Snappertuna, simplesmente Tuna durante o período medieval, quando a maioria dos seus habitantes trabalhava para o castelo. Em pouco tempo, mas sempre num ritmo pausado, descubro, no centro da aldeia, um museu popular que recria a vida de uma quinta/casa de pescadores no início da segunda metade do século XIX, com o seu edifício principal, celeiros e armazéns, todos eles originalmente da ilha de Halstö.

Sinto vontade de caminhar um pouco mais através do trilho dos amantes, de cruzar as suas pontes que cruzam o rio, de escutar os sons da natureza, de perscrutar pássaros e árvores. Depois, eu próprio me planto em frente da igreja de Snappertuna, subjugado pelo seu peso histórico e pelo interessante contraste que as suas tonalidades amarelas e a cor natural da madeira, dos telhados e da cúpula, produzem quando projectadas contra um céu infinitamente azul. 

Levantada em 1689 por um ferreiro que terá roubado madeira no lugar onde está situada — foi essa a pena que teve de cumprir — é considerada a igreja cruciforme mais antiga da região. No interior, destaca-se um lustre antigo mas com idade indefinida, mais um conjunto de pinturas mais recentes no púlpito e ao longo das galerias, um órgão de 1884, bem como uma fotografia da Virgem Maria em frente a uma igreja que é, eventualmente, a única que mostra como era a estrutura antes de ser alterada em finais do século XVIII.

Outra vez no exterior, deito um olhar à torre sineira, também do século XVIII e onde Helene Schjerfbeck (1862-1946), pintora finlandesa, se terá inspirado para produzir algumas das suas obras. 

Os turistas são raros, agora que o Verão já se despediu.

- O Verão é a época alta do turismo nesta região costeira mas qualquer uma das estações tem a sua beleza singular. Por essa razão, são cada vez mais aqueles que a procuram no Inverno, no período do Natal. Actualmente, a maior parte dos visitantes (quase 90%) são finlandeses, mas o número de turistas estrangeiros tem vindo a aumentar todos os anos. No último ano, por exemplo, Raseborg recebeu 150 mil pessoas, das quais metade permaneceu pelo menos uma noite, admitira, horas antes, Ville Vuorelma.

A tarde, como o tempo, avança na sua marcha inexorável. O meu próximo destino, não tão distante quanto isso, é Malmbacka, uma pequena aldeia rodeada por uma tranquila área rural que deixa ver, aqui e acolá, alguns animais selvagens. De Verão ou de Inverno, na Primavera e no Outono, oferece uma paisagem que convida a uma caminhada ou a um passeio de bicicleta, até que as forças se esgotem e se sinta o apelo de uma cottage de madeira ou de uma simples cabana de um carvoeiro (réplica) com a sua pele de carneiro — umas e outras sem electricidade e sem canalização e com casa-de-banho exterior.

Ainda antes de mergulhar num sono profundo, pode cozinhar numa fogueira ao ar livre, depois de cortar a sua própria lenha ou de a adquirir já cortada, tentando imaginar como era a vida na aldeia que vivia do comércio do carvão já no início do século XVII, mais ou menos nas condições que são oferecidas nos dias de hoje para preservar uma forte tradição e recordar a importância de uma indústria que as novas tecnologias foram apagando da memória — Setembro é uma boa altura para visitar Malmbacka, quando tem lugar o fim-de-semana do carvão, com as suas gentes vestidas de forma tradicional, muita comida e os antigos fornos, alguns deles recuperados, se voltam a acender para prestar tributo a uma herança com mais de 400 anos.  

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Kjell Svenskberg

Permito que o dia se extinga já em Ekenäs.

A doce Ekenäs

Tammisaari, a toponímia em finlandês, soa-me mais exótico. A cidade, especialmente num dia de sol como este, exerce um fascínio instantâneo sobre o viandante, talvez pela brisa que chega do mar, talvez pela elegância das suas casas pitorescas de madeira que também beijam as águas.

Começo por subir as escadas do posto de turismo para lançar um olhar à torre da igreja do outro lado da praça onde, às quartas e sábados, tem lugar um mercado que fervilha de vida. A igreja, à qual chego seguindo ao longo da Stora Kyrkogatan, é o coração do centro histórico desta urbe com menos de 15 mil habitantes, um espaço de culto que começou a ser construído em 1650 mas cujas obras apenas foram concluídas 20 anos mais tarde. Danificada durante o incêndio que afectou a parte antiga de Ekenäs, em 1821, foi mais tarde restaurada com profundas alterações face à sua estrutura original mas entre as suas paredes cinzentas ainda se podem apreciar algumas obras que atestam o seu passado, como um púlpito do século XVII.

Saio para a rua, sob um sol que aquece à medida que os ponteiros dos relógios da torre avançam, sento-me num parque banhado por uma sombra tranquila, com as suas árvores subindo nos céus, até que me decido a espreitar detalhes de elegantes casas de madeira que encontro aqui e ali, nas proximidades da igreja. Muitos dos edifícios do centro histórico datam dos últimos anos do século XVIII e do século XIX, mas Ekenäs cresceu a partir do que era, no século XVI, uma aldeia de pescadores à qual o rei Gustavo Vasa conferiu, logo em 1546 (uns anos antes de Helsínquia), o estatuto de cidade, na expectativa de rivalizar com a poderosa Talin, a actual capital da Estónia.

Por estes dias, Ekenäs é uma cidade vibrante, com as suas lojas, os seus restaurantes, os seus cafés, as ruas que são um forte apelo ao consumo mas também a um passeio demorado (a Kungsgatan foi a primeira rua pedonal da Finlândia), mais as suas esplanadas onde apetece permanecer nos meses de Verão, fitando o sol que teima em não se deitar, observando toda a serenidade que emana do arquipélago que se estende à nossa frente até perder de vista.

Sem um rumo definido, caminho até à Basatorget, uma praça em tempos com um mercado agitado e onde, nos dias de hoje, se recordam os dias de ontem, com a presença de um pelourinho que era cenário de castigos públicos. Em diferentes aspectos, Ekenäs, absorvida, em 2009, pela cidade (e município) de Raseborg, parece embrenhada num passado tão distante, como se constata simplesmente caminhando pelas suas ruas — basta prestar um pouco de atenção à toponímia para se perceber que, a esse nível, nada mudou desde o século XVI.

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Jussi Hellsten

Hattmakaregatan — a rua dos chapeleiros; Linvävaregatan — a rua dos tecelões de linho; Smedsgatan — a rua dos ferreiros; Garvaregatan — a rua dos curtidores.

Continuo a minha errância tranquila, desaguo no Stallörsparken, onde as crianças brincam, sento-me por instantes na praia, na Strandallén, onde às terças-feiras um mercado nocturno junta locais e turistas e, mais para lá, no final da Strandallén, avisto uma das referências de Ekenäs, o restaurante Knipan, mais fotografado do que qualquer monumento na cidade. Conta-se que na altura em que o proprietário pensou em abrir este espaço, a quota de restaurantes já estava preenchida e, como tal, não teve autorização para construir — um vazio legal foi encontrado e, por isso, todos podem admirar o Knipan assente sobre pilares, no mar (abre apenas nos meses de Verão). 

Caminho para a direita da Strandallén, passo mais esplanadas e restaurantes onde se conversa em voz baixa, avisto uma casa em madeira, pintada de vermelho e construída em 1840, e entro para conhecer o Ekenäs Nature Centre e para melhor me identificar com o arquipélago e com as mudanças que o afectaram ao longo dos anos.

Sempre com o mar como companheiro, escutando os seus murmúrios, as suas queixas, observando os cisnes, prossigo pela Västevallen até virar na Linvävaregatan, a dos tecelões de linho desse passado remoto, e sinto um prazer renovado por me encontrar de novo na zona antiga, sem pressa de ver muito mais de Ekenäs e muito menos ainda quando me sento, sobre as macieiras, no Cafe Gamla Stan, com a sua bonita cottage do século XVIII, saboreando um café.

Agora, com as forças retemperadas, posso caminhar um pouco mais, até Fisketorget, onde os pescadores vendiam o seu peixe, e mais ainda, ao longo do cais que começa na praça e corre em volta da Södra viken.

É tempo de parar num parque, de tocar um sino no monumento que presta homenagem a Helene Schjerfbeck, a famosa pintora que apreciava os Verões em Ekenäs antes de se mudar definitivamente para a cidade que a acolheu entre 1925 e 1941.

A noite cai sobre Tammisaari.

A genuína Hanko

E a manhã, já adiantada, descobre-me em Hanko, a Hangö dos suecos, a cidade mais a sul do país, sub-região de Raseborg e ainda parte de Uusimaa Ocidental. Hanko é um lugar muito popular entre os finlandeses, com mais dias de sol do que qualquer outro na Finlândia e mesmo do mar Báltico. No dia anterior, pesquisando, ficara encantado com a ideia de desfrutar, por mais ou menos tempo, das quatro razões com que o turismo de Hanko desafiava o turista para o convencer a visitar esta cidade do sul profundo: o oceano, a luz, as pessoas e a sua atmosfera genuína.

Não podia pedir muito mais.

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Jussi Hellsten

A história de Hanko, documentada já em finais do século XIII, está intimamente ligada à história da navegação. Localizado numa posição privilegiada, o cabo Hankoniemi foi palco de batalhas sangrentas ao longo dos séculos, de recolha de direitos alfandegários já no início do século XVII,  como foi vítima, desde tempos imemoriais, do poderio sueco e, muitos anos mais tarde, dos russos. Pedro, o Grande construiu uma fortaleza ao longo do mar que também passava por Hankoniemi; muito tempo depois, durante a Guerra de Inverno, entre 1939-40, os finlandeses renderam-se aos russos em Hankoniemi, abrindo caminho para uma base militar daqueles em Hanko. Quando a Guerra da Continuação começou, a linha da frente situava-se em Lappohja. Mas nada impediu que muitas das lutas entre russos e finlandeses se travassem nas ilhas à volta do cabo de Hankoniemi. No início de Dezembro de 1941, Hanko era reconquistada e os seus cidadãos, obrigados a deslocarem-se, regressavam para testemunhar os danos provocados pelos russos nas suas casas bombardeadas ou mesmo na elegante torre da água (ao lado da igreja), situada na colina de Vartiovuori, que trataram de destruir antes de partir.

Hanko, com os seus 30 quilómetros de praias, do agrado de praticantes de surf, de windsurf e de kitesurf, bem como daqueles que nada mais buscam do que fazer quase nada, paraíso para a observação de árvores e cidade termal, em tempos uma das melhores do Norte da Europa, frequentada por homens de negócios, por príncipes e condes, por barões, Hanko – ia a escrever —  é também o lugar de onde partiram, em finais do século XIX e princípios do século XX, 250 mil finlandeses (entre um total de 400 mil) para o Canadá, a Austrália e os Estados Unidos da América, em busca de fortuna.

Muitos deles, enquanto esperavam para entrar nos navios, dançavam no alto de desfiladeiros.

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A Finlândia nem sempre foi um país rico.

Mas em 1879, cinco anos após a fundação de Hanko, materializada logo após a conlusão das obras do porto e da estação ferroviária, já se inauguravam as termas que traziam os primeiros turistas (muitos deles russos) à cidade, situado a curta distância de um casino não menos sedutor para a época.

- A minha mãe é natural de Hanko, o município vizinho, e eu passei muitos Verões e fins-de-semana na região. Aqui, comparando com as grandes cidades, as pessoas são mais tranquilas e amigas, e há sempre tempo para uma conversa e para tomar um café.

Esta é ainda uma riqueza para Ville Vuorelma.

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