É feliz?

É importante desligar o cérebro e não pensar no que é ser feliz ou em quantificar a felicidade. Porque não há “felicidódromos”, tanto quanto não há dois momentos felizes iguais.

“É feliz?”, atirou-me o jornalista António Jorge, da Antena 3, em entrevista que irá para o ar este sábado na rubrica “Razão de ser”, das 11 às 12 h. Fiquei atordoado. Não estava à espera de um fim deste tipo, depois de uma estimulante conversa sobre o percurso de vida, o Direito e os direitos humanos, a poesia e assuntos da actualidade a que nem Tancos escapou.

Respondi usando o velho cliché de que “tenho momentos de felicidade” e acrescentei que sou um pessimista antropológico moderado, discordando de Rousseau. E a pergunta tem-me martelado na cabeça. A formação jurídica impeliu-me a procurar a definição de “felicidade”. Não a de um qualquer dicionário, nem tão-pouco a de muitos filósofos e ensaístas que há milénios se dedicam ao tema.

A única coisa certa que parece existir é que ninguém é totalmente feliz. Há sempre uma ou mais dimensões da vida que faltam e o ser humano, por definição, é insatisfeito. E ainda bem, ao menos em parte. Se o não fosse, nenhum de nós encontraria motivação para se levantar da cama, para trabalhar, para ter família e amigos, relações amorosas e, de quando em vez, pensar e agir a favor dos outros.

O problema, diz-nos a Psicologia, é quando essa insatisfação se torna uma constante, quando dura dias, semanas, meses, anos ou uma vida. O conceito de auto-estima, do modo como os outros nos vêem, em muito influem em tudo isto e também é seguro que a pessoa que éramos aos 20 não tem nada que ver com a mesma massa de ADN aos 30, 40, 50 e daí em diante. A capacidade modeladora do ser humano é extraordinária e a personalidade, apenas de se estabilizar nos seus traços fundamentais no início da idade adulta, vai conhecendo mutações que se não ficam por uma acomodação ao outro, p. ex., nas relações amorosas.

Lembro-me sempre de, por educação e por ter sido uma esponja do que aprendi na catequese, ser um jovem universitário com ideias muito definidas sobre o aborto, até que alguém próximo se viu nessa situação e, de entre um conjunto de amigos, financiámos a solução. Recordo-me como se fosse hoje do momento em que fui levantar 5 ou 10 contos (isso já não sei precisar), que era o meu quinhão no crime. Estava entre a espada e a parede: a nobre missão de ajudar uma amiga que ficaria com a vida esfrangalhada e a obediência a uma espécie de dogma internalizado. Foi um ponto de viragem na minha vida. Tornei-me mais flexível e aberto, comecei um processo de relação com o transcendente que não necessita de qualquer religião como medianeira e descobri que havia muito mais maneiras de ser feliz que não apenas o modelo que tinha em casa.

A pergunta tem-me lixado a semana. Talvez não seja feliz. Porventura ninguém é. Os mais ricos têm os seus problemas e isso aproxima-os extraordinariamente dos mais pobres. Quiçá a certeza de uma impossibilidade fáctica de plena felicidade seja o cimento aglutinador das sociedades que as impede de ruírem; a mola propulsora comum que freia revoluções. Se a consciência da infelicidade fosse sentida como um raio de sol ou uma pinga de chuva na pele, a organização societária que conhecemos já não existiria e teria sido substituída por outra, anárquica e auto-implosiva. Mas dar por mim enleado nesta filosofia barata de que é a impossibilidade numénica de uma felicidade total, que a todos sustenta e que mantém alguma ordem no mundo, é um resultado ainda mais depressivo. Ou talvez não – somente uma verificação realista da realidade, o nosso típico “cá se vai andando” ou “nunca pior” à pergunta retórica de “como estás?”.

Podia enxamear este arrazoado com citações catitas sobre o que é a felicidade. Citaria Sto. Agostinho: “ama e faz o que quiseres”, sendo que neste “ama” vai todo um programa de vida para e com os outros, aparentemente a única forma de ser feliz. Mas logo me acometeu o olhar moribundo de uma avó que trago junto ao peito e os lampejos de felicidade quando me via ou quando lhe confessava coisas que nunca fui capaz de dizer a ninguém. A insustentável leveza de um segredo de avó demente no leito da morte e que me perdoaria sempre, ainda que eu fosse um Hitler. Ou a felicidade (momentos de) uma tia-avó que enlouqueceu e que, tendo desenvolvido uma obsessão pelo marido, parava de chorar como um bebé quando ele aparecia e lhe dizia “estou aqui”. E ela dava-lhe a mão e ele estava. Ali. Sem vontade alguma, ou melhor, com desejo de pôr termo àquele martírio.

Felizes os ignorantes, porque deles é a felicidade eterna. Assim se resume uma outra linha de pensamento muito comum. Verdade. Questionam menos ou nada. Limitam-se a viver sem esperar muito, sem grandes perguntas, aceitando o que surge e como surge. Fechemos então as escolas e as bibliotecas a favor de um interesse societal comum de sermos todos mais felizes. É que há tanta gente que do pouco muito faz. Que vive em estado material miserável e aprecia como oiro aquilo que outros têm por dados adquiridos e em que, por isso, nem reparam. E ter algo ou alguém por adquirido é meio caminho andado para se ter menos momentos de felicidade. Liberdade, pois. Ninguém pertence a ninguém, ainda que a sensação de posse nos ajude a uma pretensa colmatação de lacunas internas por via do outro. Viver através e para os outros é um menos nessa eterna busca da felicidade.

Se algo a idade nos vai trazendo é a capacidade de não ver e pensar maniqueistamente a preto e branco. Aprende-se a contemplar os infinitos tons de cinza, a relativizar as nossas verdades, as nossas tendências, as nossas escolhas, o nosso programa de vida. A aceitar que tantos outros matizes são combinações igualmente válidas. E nem de validade se trata, mas da egoística constatação que, logo que os alicerces sociais se não corroam, quem somos nós para opinar sobre caminhos diversos dos nossos?

Dir-me-ão que é a abertura ao indeterminismo radical. Por certo não. Ou a uma sociedade amoral em que tudo é consentido. Menos ainda. Simplesmente, é assustadora a forma como quem manda nas sociedades modernas nos quer fazer um plano de treino para atingirmos a felicidade. Sem vícios ou exageros, com muito exercício físico, meditação, estruturas sociais saudáveis (nunca soube o que isto é). Quem o faz detém o poder económico e vende-nos uma sociedade light, glúten free e livre de dor. A maior patranha de hoje.

Felicidade e dor são irmãs siamesas (não é por acaso serem palavras femininas, por cada vez mais estar convencido do que, entretanto, se alçou ao anedotário universal de que a prioridade bíblica de Adão se deve apenas à necessidade de o próprio Deus ter construído um modelo mais evoluído). E prometer, sobretudo aos mais jovens – com colégios privados em que os estudantes vivem em bolhas sociais, com os pais a levarem os filhos de carro a todo o lado, a não os deixarem brincar na terra, caírem e magoarem-se (real ou metaforicamente) – que terão uma vida como nas redes sociais ou em séries que mais não são que contos de fadas aggiornatos.

Vou desligar o cérebro e não pensar no que é ser feliz ou em quantificar a felicidade. Não há “felicidódromos”, tanto quanto não há dois momentos felizes iguais.

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