Tropa fandanga

Abandonar as Forças Armadas e depois pasmar-se com "o estado a que isto chegou" não deixa de ser uma incoerência da nossa sociedade.

Porque motivos pessoais a elas me ligam, e também porque sou, por formação cívica e por convicção, um institucionalista, sempre tive as Forças Armadas na melhor consideração possível. Ser militar sempre foi, aos meus olhos, sinónimo de sacrifício, de lisura de carácter e de rectidão de comportamento. Até o mais convicto institucionalista terá, porém, que reconhecer o profundo abalo sofrido pela crença nas Forças Armadas à luz dos mais recentes (e dos não tão recentes) acontecimentos.

Enquanto lá fora, com maior destaque para a República Centro-Africana, mas não só, militares portugueses arriscam diariamente a vida por nós e por outros e orgulham as nossas Forças Armadas e o nosso país, por cá outros não fazem senão contribuir para a sua destruição a partir de dentro (desde logo o próprio chefe do Estado-Maior do Exército, que exonerou cinco comandantes em directo na televisão, numa forma de proceder que afronta os princípios mais básicos de conduta humana e militar).

O mais recente episódio da detenção do director da Polícia Judiciária Militar é apenas mais um de uma novela cujas gravíssimas consequências todos reconhecemos. A Operação Zeus (o caso de corrupção na Força Aérea, envolvendo altas patentes) e o caso de Tancos (revelador da falta de meios conjugada com a incúria e displicência do Exército, tanto no pré como no pós) são de tal gravidade que fazem com que qualquer português olhe para as Forças Armadas, que até há bem pouco tempo eram das (poucas) instituições nacionais cujo respeito era consensual, com desconfiança. Por muito que a instituição procure demarcar-se desses comportamentos, afirmando tratar-se de actos isolados, praticados por um número de pessoas pouco significativo quando comparado com o efectivo total (algo que quero profundamente acreditar seja verdade), o que é facto é que o posto ocupado pelos alegados criminosos é elevado, o que denota que gente sem carácter e sem virtude penetrou as altas esferas decisórias. Ora, isto faz com que a desresponsabilização institucional não seja uma opção. Hoje, numa altura em que, possivelmente mais do que nunca, o papel das FA como espinha dorsal da nação surge como indispensável, elas próprias parecem empenhadas na auto-destruição da sua imagem.

Apesar de tudo, se quanto às consequências praticamente todos estaremos de acordo, a procura das causas parece, quer ao povo de um modo geral, quer ao Estado em particular, interessar-nos menos. É que os eventos presentes, e digo-o sem querer de maneira alguma minorar ou desculpabilizar aqueles que, dentro das FA, terão praticado actos censuráveis, são também consequência da forma como votámos ao abandono as FA nas últimas décadas e as menosprezámos, pagando uma côdea de broa (tanto no sentido material como simbólico) àqueles a quem, em última análise, pedimos que morram por nós. Abandonar as FA e depois pasmar-se com "o estado a que isto chegou" não deixa de ser, numa perspectiva global, uma incoerência da nossa sociedade. Neste assunto como em muito outros em Portugal, esquecemo-nos que para exigir, como devemos exigir, um trabalho de excelência, é preciso providenciar condições de excelência. À sociedade e ao Estado fica a pergunta: será que o fizemos?

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