Comércio, segurança alimentar e alterações climáticas

Estima-se que os impactos mais relevantes das alterações climáticas ocorram nos países de baixa latitude — países de clima tropical, essencialmente —, onde actualmente já se verifica o maior número de pessoas cronicamente subnutridas.

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Pop & Zebra/Unsplash

A Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) divulgou, recentemente, o documento The State of Agricultural Commodity Markets, o qual tem como principal objectivo discutir a complexa interacção entre o comércio internacional de produtos agropecuários, a segurança alimentar e as alterações climáticas.

Em resumo, o documento reafirma que as alterações climáticas são responsáveis por mudanças importantes nos sistemas e geografias de produção de alimentos, trazendo novos desafios para a segurança alimentar. Isto porque se estima que os impactos mais relevantes das alterações climáticas ocorram nos países de baixa latitude — países de clima tropical, essencialmente —, onde actualmente já se verifica o maior número de pessoas cronicamente subnutridas.

Segundo um outro relatório lançado pela mesma FAOThe State of Food Security and Nutrition in 2018 –, aproximadamente 80% das 821 milhões de pessoas cronicamente subnutridas do mundo vivem em países de clima maioritariamente tropical, com destaque para as sub-regiões África subsaariana e para o Sul e Sudeste Asiático.

Acrescenta-se a isto o facto de a população mundial poder ultrapassar os actuais 7 mil milhões para mais de 9 mil milhões de habitantes até ao final da primeira metade deste século XXI, com a maior parte deste incremento populacional a ter origem nos países em desenvolvimento, boa parte deles de clima tropical.

Todos estes dados e estimativas indicam a necessidade de aumento da produção agropecuária nestes mesmos países para suprir o aumento da demanda em função do incremento da população — e também para cobrir o gap da insegurança alimentar.

No entanto, com raríssimas excepções — sendo o Brasil talvez o exemplo mais latente de “excepção à regra” —, estes países de clima tropical possuem actualmente baixos níveis de produtividade agropecuária, resultado principalmente de: 1) técnicas rudimentares de baixa intensidade tecnológica e pouco sustentáveis; 2) falta de coordenação entre os agentes das cadeias de valor; 3) infra-estruturas deficientes; 4) pouca disponibilidade de crédito para custeio e investimento; 5) insegurança jurídica, imprevisibilidade político-económica e conflitos.

Estas condições precárias, aliadas às alterações climáticas, tornam o aumento da produção altamente desafiador nestas geografias. Em muitos casos, prevê-se mesmo a redução da produção, o que pode levar ao caos generalizado em matéria de segurança alimentar.

Neste sentido, a própria FAO reconhece que o comércio internacional é uma alavanca importante neste contexto de adaptação às alterações climáticas e redução da insegurança alimentar. No curto prazo, movendo os alimentos de áreas superavitárias para áreas deficitárias em função de eventos climáticos extremos como as secas e as cheias. No longo prazo, o comércio internacional pode contribuir para o ajustamento eficiente da produção agropecuária entre os países, uma vez que as alterações climáticas fatalmente modificarão as vantagens comparativas e a competitividade entre os países e regiões.

No entanto, é importante alertar que muitos dos países que sofrem com a insegurança alimentar — e que, ao que tudo indica, irá piorar ceteris paribus — e com níveis rudimentares de produtividade agropecuária insistem em medidas proteccionistas que beneficiam apenas interesses espúrios das elites locais — pouco preocupadas efectivamente em serem mais produtivas, enquanto a população em geral morre de fome. Ou seja, é bem possível que diversos países em situação de vulnerabilidade ainda maior no futuro próximo sejam reticentes em compreender e aceitar o papel do comércio internacional, de forma a garantir a manutenção dos privilégios de pequenos grupos locais vinculados ao poder.

A FAO também sugere no documento que o comércio internacional, ainda que seja uma importante alavanca, não deve ser a única opção para os países que sofrerão os impactos negativos das alterações climáticas. Isto porque a dependência completa das importações pode levantar questões como a capacidade financeira dos países importadores no longo prazo em arcar com os custos oriundos deste movimento, com impactos nos empregos e nas balanças comerciais e reservas internacionais dos países.

Assim, para além do comércio internacional de produtos agropecuários, medidas que construam resiliência nos países mais afectados pelas alterações climáticas também são importantes. É o que a FAO chama de medidas e incentivos para a adopção de práticas agropecuárias “climate-smart” que ao mesmo tempo colaboram para o aumento da produtividade e para a maior sustentabilidade ambiental. Trata-se, em boa medida, dos incentivos classificados na Caixa Verde do Acordo sobre a Agricultura da Organização Mundial do Comércio, isto é, incentivos que não promovem distorções no comércio internacional. É o caso, por exemplo, da pesquisa e desenvolvimento, programas de treino, extensão e assistência técnica.

As poucas experiências até ao presente de superação da insegurança alimentar sugerem que investimentos locais em conhecimento e tecnologia (choque de produtividade) e abertura comercial ao mundo (choque de competitividade) foram suficientes. Este novo período, marcado pelas alterações climáticas, como se vê, exigirá um pouco mais daqueles que querem tornarem-se seguros do ponto de vista alimentar, uma vez que a escolha de políticas erradas pode ser literalmente o fim da linha para alguns países.

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