Um feito histórico

Os direitos humanos deixaram de ser um “assunto doméstico” e um tema exclusivo do direito constitucional interno. Portugal compartilha inteiramente dessa ordem internacional (e supranacional).

1. Vai ser hoje publicamente apresentado o programa das comemorações dos 70 anos da Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH) e dos 40 anos da adesão de Portugal à Convenção Europeia de Direitos Humanos (CEDH), elaborado por um grupo de trabalho interministerial e que vai ser implementado até ao final do ano.

É desnecessário sublinhar o fundamento e a importância desta celebração em Portugal. Autoafastado, durante o regime autoritário do designado “Estado Novo”, da ordem internacional dos direitos humanos criada depois da II Guerra Mundial, e consubstanciada na DUDH de 1948 -, bem como, no plano europeu, na CEDH de 1950, Portugal só pôde ingressar na comunidade internacional de direitos humanos depois da revolução de 25 de abril de 1974 e da Constituição de 1976, que consagrou um Estado constitucional baseado na liberdade, na democracia e na proteção dos direitos fundamentais.

De facto, foi em 1978, com 30 anos de atraso, que Portugal “adotou” a DUDH, só então publicada oficialmente no Diário da República, e ratificou os dois Pactos das Nações Unidas de 1966 que lhe deram força jurídica, assim como a CEDH de 1950, texto-base do sistema europeu de direitos humanos. À viragem constitucional interna em 1976, seguiu-se uma viragem histórica na frente internacional. Desde então, nestas quatro décadas, Portugal tem-se vinculado sistematicamente às numerosas convenções internacionais de direitos humanos, nomeadamente no plano das Nações Unidas, do Conselho da Europa e da Organização Internacional do Trabalho, tornando-se um verdadeiro “Estado de direitos humanos”, na linha da frente em termos comparados.

Um feito histórico, alcançado com assinalável consenso institucional e político nacional, de que nos devemos orgulhar enquanto país. Existem razões de sobra para lhe dar visibilidade, como se mostra a seguir.

2. Com a Carta das Nações Unidas (1945) e a DUDH de 1948, os direitos humanos, pela primeira vez instituídos na revolução americana de 1776 e na revolução francesa de 1789, deixaram de ser uma questão simplesmente nacional, um domínio “doméstico” coberto pelo princípio da não ingerência da comunidade internacional nos “assuntos internos” dos Estados. Depois da DUDH e dos dois pactos internacionais de direitos humanos de 1966 (respetivamente, de direitos civis e políticos e de direitos económicos, sociais e culturais), os direitos humanos passaram a valer para “toda a gente em toda a parte”, como o Presidente Roosevelt reclamara num célebre discurso de 1941, sobre as “quatro liberdades” essenciais.

Desde esses instrumentos fundadores, a ordem internacional de direitos humanos não cessou de se ampliar e de se densificar, cobrindo a proibição do genocídio, da tortura e das discriminação racial, os direitos das mulheres e das crianças, etc., ao mesmo tempo que se foram apurando os mecanismos de “enforcement”, culminado na criação do Tribunal Penal Internacional, para a punição dos crimes de guerra e contra a humanidade e do crime de genocídio.

Na Europa, dois anos depois da DUDH, em 1950, a CEDH foi a primeira convenção internacional de direitos humanos a conferir-lhe força jurídica, incluindo a revolução da criação de um tribunal internacional de direitos humanos. Também o sistema europeu de direitos humanos não cessou de se ampliar, quer quanto aos direitos protegidos, incluindo os direito sociais enunciados na Carta Social Europeia, de 1963 (com uma segunda versão em 1996), quer quanto à sua cobertura geográfica, que deixou de se limitar ao pequeno número inicial de democracias liberais do ocidente europeu, para depois abranger os países do sul, nos anos 70, depois da sua transição democrática, e por último os países do leste europeu, nos anos 90, depois do desmoronamento do mundo comunista.

Para completar o quadro, a própria União Europeia veio a dotar-se de um bill of rights próprio, adotado em 2000 e dotado de força constitucional desde o Tratado de Lisboa (2007), que não vincula somente as instituições da União, mas também os Estados-membros, quando atuam ao abrigo do direito da União, como sucede em muitas áreas.

Decididamente, os direitos humanos deixaram de ser um “assunto doméstico” e um tema exclusivo do direito constitucional interno. Portugal compartilha inteiramente dessa ordem internacional (e supranacional) de direitos humanos.

3. Ao vincular-se às convenções internacionais de direitos humanos, Portugal não assume somente a obrigação de os respeitar perante os demais Estados e perante os organismos internacionais encarregados de monitorizar o seu cumprimento. As convenções internacionais de direitos humanos também constituem uma mais-valia em termos de reforço da proteção dos beneficiários dos direitos humanos, ou seja, as pessoas, a qual acresce à que decorre do direito constitucional interno.

Antes de mais, na nossa ordem constitucional, as convenções internacionais de direitos humanos a que Portugal se vincula vigoram automaticamente na ordem jurídica interna e, no entendimento quase unânime, prevalecem sobre as próprias leis internas, podendo por isso ser invocadas pelos interessados em seu favor e devendo ser aplicadas pelos tribunais nacionais, proporcionando por isso uma linha suplementar de proteção dos direitos humanos.

Em segundo lugar, as convenções internacionais de direitos humanos proporcionam aos cidadãos e a outras pessoas sujeitas à jurisdição nacional os instrumentos de proteção internacional nelas previstos, que vão desde um direito de queixa individual ou coletiva perante os órgãos de monitorização previstos (por exemplo, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas) até uma verdadeira proteção judicial, como sucede no caso da CEDH, com o direito de recurso em última instância, depois de esgotados os mecanismo de proteção “doméstica”, perante o Tribunal Europeu de Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo.

Importa sublinhar, aliás, que os Estados não podem invocar o seu direito interno nas instâncias internacionais para se eximirem ao cumprimento das suas obrigações internacionais, pelo que podem ser condenados no foro internacional por ações ou omissões que não foram considerados desconformes ao seu direito constitucional interno. É o que tem sucedido em várias condenações de Portugal em Estrasburgo.

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