Como não combater o racismo

Mais prudente do que decretar arbitrariamente o fim do conceito de “raça”, como se efectivamente o pudéssemos reduzir a uma efémera “construção social”, é lembrar que terão de ser as nossas construções sociais (ideias) e não nenhum facto científico a erradicar o racismo.

Apesar de se tratar da notícia de uma morte, foi com satisfação que, no passado dia 1 de Setembro (de 2018), vi a nossa imprensa dar atenção a um dos cientistas mais incontornáveis da segunda metade do século XX: Luici Cavalli-Sforza. Este italiano, que fez grande parte da sua carreira nos Estados Unidos, foi um geneticista que é hoje tido como o pai da genética de populações humanas, uma disciplina de enorme importância para a Biologia e a Antropologia. Infelizmente, sabemos que poucos leitores irão além do título e “Morreu Cavalli-Sforza, o cientista que acabou com o conceito de raça reflecte mais as ideias da jornalista Clara Barata do que o pensamento e a contribuição de Cavalli-Sforza para a ciência e a sociedade. Para prevenir indignações precipitadas, friso que o meu propósito não é restaurar o uso do termo “raça”, nem muito menos promover o racismo científico de tão trágica memória, mas alertar para alguns vícios que minam esta discussão.

A genética continuou e aprofundou a tradição de separar as populações humanas segundo agrupamentos a partir de algum critério morfológico ou bioquímico. Sem estas divisões não haveria genética de populações humanas, nem estudos de base genética sobre as grandes migrações, a nossa genealogia e a evolução das línguas, temas predilectos de Cavalli-Sforza O italiano tinha noção de como a sua área de estudo é vulnerável a ataques ideológicos. De resto, apesar de nos anos 70 ter argumentado que, enquanto geneticista, não via nenhuma razão para a existência de diferenças de base genética na inteligência das diferentes etnias, quando, anos depois, procurou estudar o genoma de populações indígenas de diversas regiões do planeta, seria acusado de insensibilidade cultural, neocolonialismo, biopirataria e racismo. Por isso, e como se esperaria de qualquer pessoa sensata, bem-intencionada e com vontade de proteger o seu trabalho, procurou esvaziar o conceito de raça, mesmo reconhecendo que do ponto de vista científico não há consenso sobre a matéria, lembrando que o grau de subdivisão que se aplica à espécie humana é arbitrário e que as variações entre as populações são graduais. Mas é incorrecto descrever Cavalli-Sforza como o cientista que “acabou” com a polémica em torno do conceito de raça. Ainda estava ele a começar a sua carreira, então concentrado apenas na pacata genética bacteriana, e já a UNESCO, em 1950, na ressaca das atrocidades da Segunda Grande Guerra Mundial, publicava textos de especialista aconselhando o abandono do problemático termo “raça” quando aplicado ao homens. E poucos meses antes da sua morte, aos 96 anos, talvez Cavalli-Sforza tenha lido um artigo que o seu discípulo David Reich publicou no The New York Times intitulado How Genetics Is Changing Our Understanding of ‘Race’ (3), representativo de como a polémica em torno do termo “raça” persiste.

Ninguém discute a componente de “construção social” e a grande margem de arbitrariedade no estabelecimento de agrupamentos de populações humanas. Mas é indesmentível que a genética e os métodos estatísticos desenvolvidos por Cavalli-Sforza e muitos dos seus colegas e discípulos separam efectivamente os homens de acordo com as grandes divisões tradicionais que o nosso sentido da visão corrobora. Quem se refugiar nos múltiplos casos particulares em que há um grande desajustamento entre a separação tradicional e a diferença genética estará a camuflar a regra com as excepções. E quando, de forma explícita ou implícita, o PÚBLICO e muitas publicações generalistas repetem um velho argumento do geneticista Richard Lewontin para invalidar a distinção de agrupamentos humanos, estão a levar o leitor para areias movediças.

Em 1972, Lewontin publicou o estudo The Apportionment of Human Diversity em que concluiu, com base numa análise gene a gene, que a proporção média da diversidade genética total da espécie humana que está contida dentro dos grupos humanos é 85%, sobrando apenas 15% para as diferenças entre os grupos humanos. Por outras palavras, se nos concentrarmos num determinado grupo, é provável que detectemos a maior parte das variantes de genes que estão presentes nos outros grupos. Isto é um facto e nada nos impede de o usarmos como evidência de que, enquanto indivíduos da mesma espécie, somos muito parecidos, por muito diferente que seja o tom da pele. Sucede que Lewontin quis transformar um facto num argumento político contra a ideia de agrupar os indivíduos com base em características morfométricas, bioquímicas ou genéticas, incorrendo num erro de estatística elementar entretanto desmontado na literatura especializada mas que persiste há décadas no espaço público devido ao prestígio deste cientista, à nossa vontade de descobrir na natureza uma prova contra o racismo e à suspeita que imediatamente cai sobre quem se atrever a contestar este mantra.

Sem recorrer a fórmulas matemáticas, a falácia do argumento de Lewontin revela-se com uma analogia: uma comparação gene a gene é tão desadequada para a definição de agrupamentos humanos como tentar encontrar relações de parentesco entre os indivíduos presentes numa festa de aniversário comparando primeiro todos os narizes, depois todos os olhos, a seguir as bocas, os queixos e assim sucessivamente, sem nunca integrar estas diferentes características numa análise multifactorial, que é o que todos nós fazemos quando olhamos para uma cara e recorremos ao nosso talento natural para distinguir centenas ou milhares de rostos. A informação relevante para o estabelecimento de grupos ou a discriminação e associação de caras não está na análise isolada de genes, características morfométricas ou outros detalhes da morfologia, pois é a correlação entre os factores que verdadeiramente distingue os elementos de um grupo dos de outro grupo.

Estranhe-se primeiro, se depois se entranhar, a tese de que os dados da genética de populações podem ser utilizados para combater o racismo ou para o promover. Aqueles que abominam o racismo frisarão que é cientificamente irrefutável que as populações humanas estão unidas por laços genealógicos que fazem um skinhead primo afastado do indivíduo negro que odeia; os racistas insistirão na irrefutabilidade das diferenças genéticas entre populações humanas. Mas restringir ou ancorar a discussão sobre o racismo ao nível estrito da genética das populações é absurdo, pois a existência de grupos distintos é apenas uma condição necessária ao racismo, mas não suficiente – o racista revela-se no desejo de hierarquizar os agrupamentos. É também um nível de discussão que cria uma armadilha, pois fará como que atropelemos o rigor científico, como bem ilustra a popularidade da falácia de Lewontin, o que para o racista será um brinde.

O racismo não se combate com a genética de populações, mas a outro nível. A argumentação terá de ir beber ao ideal de dignidade humana, ao primado do indivíduo sobre a identidade de grupo, à irrelevância da genealogia enquanto critério diferenciador nos regimes republicanos e a outros conceitos da Política, Ética, Filosofia e também da História, que tantas e reiteradas provas nos deu de que o racismo é uma ideologia má. Mais prudente do que decretar arbitrariamente o fim do conceito de “raça”, como se efectivamente o pudéssemos reduzir a uma efémera “construção social”, é lembrar que terão de ser as nossas construções sociais (ideias) e não nenhum facto científico a erradicar o racismo.

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