Alguns “mitos” sobre o segredo religioso

No caso do segredo religioso, obviamente que abrangendo toda e qualquer confissão nos termos da disposição já citada, nenhum tribunal pode ordenar a sua quebra.

Ainda sobre o verdadeiro terramoto que se faz sentir na Igreja Católica, e sobre o qual já tive ocasião de me pronunciar no PÚBLICO, gostaria de comentar as recentes notícias vindas da Conferência Episcopal Australiana, secundadas pela nossa, no sentido de que o segredo de confissão é inquebrantável e que aquilo que for dito nesse espaço – que a Igreja Católica, como tantas outras, considera um sacramento – não é passível de ser revelado, mesmo que se trate da assunção da prática de crimes, no caso, de abuso sexual de criança ou de actos sexuais com adolescentes.

É efectivamente esta a orientação legal, constante do art. 135.º, n.º 5 do Código de Processo Penal (CPP), o qual, sem margem para dúvidas, estabelece que o segredo religioso é o único que jamais pode ser ultrapassado. O sigilo profissional, p. ex., pode ser quebrado, por ordem do tribunal superior ao qual o sujeito ou participante processual o invoca, cabendo aos juízes elaborar um juízo de ponderação entre os interesses protegidos pelo segredo e a necessidade absoluta e imprescindibilidade de tal quebra para a descoberta da verdade material. O Estado – e bem – reconhece que determinadas profissões, como os advogados, médicos ou psicólogos, por via do múnus que exercem, devem ser resguardados da obrigação de dizer em julgamento (ou nas fases processuais anteriores) tudo aquilo que sabem e cujo conhecimento lhes adveio por causa e no exercício das suas funções. Trata-se da “pedra de toque” de várias profissões, atenta a essencial relação de fidúcia que deve interceder entre o profissional e o seu cliente/paciente. Como em quase todos os valores, ele não é absoluto, podendo cessar por autorização das Ordens profissionais respectivas ou por decisão de um tribunal superior. Mesmo assim, vários são os agentes que optam por incumprir o acórdão, não revelando em juízo o que sabem, preferindo cometer o delito de desobediência a expor o que entendem ser o timbre do seu trabalho.

Ora, no caso do segredo religioso – obviamente que abrangendo toda e qualquer confissão –, nos termos da disposição já citada, nenhum tribunal pode ordenar a sua quebra. Entendeu o legislador que essa esfera de sigilo, por contender com o exercício do direito fundamental à liberdade de religião, culto e consciência (art. 41.º da Constituição), não pode ser vulnerado. No caso da Igreja Católica, compulsado o Compêndio do Catecismo, o tecnicamente designado «sacramento da Penitência, da Reconciliação, do Perdão, da Confissão, da Conversão» importa que «[d]ada a delicadeza e a grandeza deste ministério e o respeito devido às pessoas, todo o confessor está obrigado a manter o sigilo sacramental, isto é, o absoluto segredo acerca dos pecados conhecidos em confissão, sem nenhuma excepção e sob penas severíssimas». No Catecismo propriamente dito, no § 1467, acrescenta-se que «[e]ste segredo, que não admite excepções, é chamado «sigilo sacramental», porque aquilo que o penitente manifestou ao sacerdote fica «selado» pelo sacramento.». No Código de Direito Canónico (CDC), lê-se, no cân. 978, que «§ l. Ao ouvir confissões, lembre-se o sacerdote de que exerce as funções simultaneamente de juiz e de médico, e de que foi constituído por Deus ministro ao mesmo tempo da justiça e da misericórdia divina, a fim de procurar a honra divina e a salvação das almas.». Os cânones 983 e 984 reforçam essa inviolabilidade absoluta. Donde, por muito que possa chocar alguns, outra não podia ser a resposta da Igreja Católica, que deve observância ao seu próprio CDC, o qual prevê a excomunhão latae sententiae, reservada à Sé Apostólica, se se fizer uso directo do que se conheceu em confissão, como seria o caso (cân. 1388, § 1).

Então um confessor a quem sejam relatados actos que configuram os monstruosos crimes sexuais contra menores nunca poderá revelá-los perante os tribunais do Estado? Se o fizer, em sede de Direito Canónico, vimos já as sanções que pode sofrer. Confesso que, não sendo especialista nessa área, ignoro se haverá o correspondente a uma causa de justificação da ilicitude ou de exclusão da culpa, como temos no Direito Penal secular, e que, reconhecendo o conflito entre os dois deveres, impedisse a aplicação da sanção canónica.

Do estrito prisma do Direito estadual, a questão não é de fácil resolução. E isto porque a resposta que surge mais rapidamente é a de que o material probatório assim obtido estaria ferido por uma “proibição de prova”, na medida em que foi obtido de forma ilícita, o que importa que não possa ser, de todo, utilizado no processo. Tal retira-se, de entre outras disposições, como o art. 118.º, n.º 3, do art. 126.º, n.º 1, ambos do CPP, nomeadamente na vertente de «integridade moral das pessoas» ou até como «meio enganoso» (quem se confessa confia que as suas palavras não ultrapassam aquele espaço – n.º 2, al. b)). Porém, os tribunais vão admitindo cada vez mais que os métodos proibidos de prova estão sujeitos a gradações e, por isso, gravações efectuadas por particulares, p. ex., e que em princípio constituem crime, acabam por ser admitidas em juízo, desde que se prove o chamado “estado de necessidade investigatório”, ou seja, sem essa violação do direito à palavra (ou imagem), nunca ou dificilmente se poderia fazer prova do alegado pelo ofendido. Ora, um confessor que se encontre entre o dever (jurídico) de não revelar os factos ouvidos em confissão e o dever (que não é jurídico, note-se, pelo que é meramente moral ou ético), não age ao abrigo do que designamos por “conflito de deveres”, uma vez que ambos teriam de ser jurídicos. E isto porquanto o dever de denúncia de crimes só existe para os “funcionários” (no conceito do art. 386.º do Código Penal – CP), que tenham conhecimento de delitos no exercício e por causa das suas funções (art. 242.º do CPP). Ora, nenhum ministro de culto é “funcionário” para efeitos penais. Donde, se um sacerdote ou ministro de outra religião revelar que um fiel lhe confiou que praticou um crime sexual contra menores, é ele mesmo que se acha incurso no delito de violação de segredo (art. 195.º do CP).

Uma última palavra para dizer que, sendo este o quadro legal que se compreende em face dos interesses constitucionais em presença, o que não pode suceder é que, em verdadeira “fraude à lei”, se transforme o conhecimento de qualquer clérigo sobre a prática de crimes sexuais contra menores como tendo sido revelado em confissão quando o não foi. E, cremos, na generalidade das hipóteses, os rumores e boatos surgem de circunstâncias da vida comum que as pessoas vão vendo. Só uma investigação aturada pode permitir realizar o Estado de Direito, sem que se caia, também, numa “caça às bruxas”, em que baste o “testemunho de ouvir dizer” para a condenação, tanto mais que os mass media já disso amiúde se encarregam.

A tarefa hercúlea não é só de Francisco e demais clérigos, mas de todos nós, crentes ou não. E quem entende que o actual Papa desafia interesses instituídos no interior da instituição, como já o tenho escrito, deve apelar a uma mobilização de todos os cidadãos, no sentido de demonstrar a alguns membros da Cúria que as pessoas de carne e osso já não admitem privilégios do passado, muito menos quando eles se traduzem na prática de crimes. É essencial um respaldo da sociedade civil para que Francisco e os seus opositores sintam que, nesta matéria como em outras, a Igreja tem de entrar definitivamente no séc. XXI.

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