Surpresa no Oeste: “Nunca se sabe se o comboio vai sair”

Um estranho transbordo, informações sobre a Linha do Algarve e estações fechadas. A mudança de horários não acabou com as supressões nos comboios do Oeste e o regresso à normalidade em Novembro afigura-se como sendo demasiado tarde.

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Esta é a quinta e última reportagem de uma série do PÚBLICO sobre o estado das principais linhas ferroviárias do país. Ao longo dos próximos dias, acompanhe o dossier A Ver Passar Comboios.

O comboio parte em menos de dez minutos. Na bilheteira de Coimbra B, uma breve interacção: bilhete de ida para as Caldas da Rainha às 8h50 e de regresso às 11h51, se faz favor. Atrás do guichet, o funcionário mostra alguma relutância. Há um intervalo de 23 minutos entre a chegada às Caldas e a partida do comboio que regressa a Coimbra. Contudo, pode atrasar, justifica. Antes nos deslocarmos até à plataforma de embarque, nova advertência:

- Não é directo. Agora mudam na Amieira, não sei porquê. Quer dizer, sei...

- Falta de material circulante?

- Então somos dois a saber.

Na verdade, não é nenhum segredo. Muitos dos passageiros que encontramos também o sabem e a própria CP deu essa justificação para alterar os horários a partir de 5 de Agosto. Tanto que, desde esse dia, a transportadora pública acabou com as ligações directas entre Caldas da Rainha e Coimbra que eram, à data, o serviço com maior êxito da linha do Oeste. O objectivo dessa alteração visa, segundo a linguagem técnica da própria empresa, “um redimensionamento da oferta para adequação aos recursos disponíveis, ao nível do parque de material circulante diesel da CP”.

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Ou seja, além de ter eliminado do seu horário seis comboios entre Caldas e Leiria e quatro entre Caldas e Lisboa, os inter-regionais para Coimbra passaram a terminar a sua marcha na estação da Amieira, onde os passageiros mudam de comboio para Coimbra fazendo o resto da viagem numa automotora eléctrica.

 A Amieira fica nos campos do Baixo Mondego. Não há nada à volta e a aldeia mais próxima, Casais das Camarinheiras, no concelho de Soure, fica a mais de dez minutos a pé. A bilheteira está encerrada e há uma placa da IP Património, a empresa do grupo Infraestruturas de Portugal responsável pela gestão do imobiliário, a informar que parte da estação está para arrendar. Aliás, placas iguais, com a inscrição “trata” e os contactos da empresa multiplicam-se nas estações do Oeste.

Com o transbordo ali, a CP poupa o seu estafado material a diesel com viagens mais curtas até onde existe catenária (cabo de alto tensão sobre a linha férrea).

Mas a Amieira fica a apenas três quilómetros de Bifurcação de Lares, uma estação que “toca” a linha Coimbra – Figueira da Foz e onde os passageiros também poderiam fazer transbordo. A vantagem, neste caso, seria que os clientes da CP destinados à Figueira da Foz poderiam fazer a viagem com uma única mudança. Assim, quem vai da Figueira para as Caldas tem que sair em Verride e trocar novamente na Amieira.

“É uma ideia que não se percebe”, nota o porta-voz da Comissão Para a Defesa da Linha do Oeste, Rui Raposo. “Está desactivada porque ninguém recorria àquela estação. Não tem salas de espera abertas nem qualquer protecção superior”, que abrigue do sol ou da chuva, aponta.

O PÚBLICO perguntou à Infraestruturas de Portugal (empresa responsável pelas linhas e estações) se havia algum problema técnico que impedisse a CP determinar e iniciar as suas rotações para as Caldas na Bifurcação de Lares, tendo fonte oficial respondido que “a possibilidade de o transbordo ser efectuado na Bifurcação de Lares não nos foi colocada pela CP”.

O passo seguinte foi perguntar à CP por que motivo não escolhera aquela estação para efectuar os transbordos, poupando assim os seus clientes a mais uma ruptura de carga. Mas a empresa não respondeu.

Na Amieira, espera-se entre 10 a 25 minutos pela ligação. Se o percurso até ali foi feito numa Unidade Tripla Eléctrica (UTE), a partir daquele ponto o transporte fica a cargo de uma automotora a diesel. Ao aproximar-se da plataforma, a máquina azul faz-se anunciar ruidosa e generosamente ilustrada com graffiti.

A Linha do Algarve

Já no interior da automotora, observa-se a dúvida que se forma no rosto de alguns passageiros. Olham para o bilhete e depois para a infografia da linha desenhada por cima das portas da carruagem. Repetem o exercício, sem aparente resultado positivo. Um casal de palestinianos faz uso do seu escasso inglês, complementado com gestos: aponta para o bilhete, que tem como destino Leiria, e para a infografia. Depois faz um gesto com o indicador em direcção ao chão, como quem questiona se está no comboio certo.

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Um casal de turistas norte-americanos passa por um processo semelhante. Querem ir para a Batalha e, para isso, terão de sair também em Leiria. No entanto, o painel disponível na carruagem mostra que linha vai de Lagos a Vila Real de Santo António. Há paragens em Tavira, Olhão, Faro, entre outras. De Leiria nem sinal. Lá explicamos que não estão no Algarve e que a infografia é que apanhou o comboio errado.

É no intervalo entre a Amieira e o Louriçal que nos fala Diamantino Silva, de 68 anos, que com a esposa vai dar uma mão à filha, proprietária de um restaurante na praia da Leirosa. Entraram em Verride e protestam contra a nova tabela da CP, que os faz chegar meia hora atrasados ao serviço. Mas não têm grande alternativa. “Os engenheiros que estão nos gabinetes não sabem porque não andam nos comboios”, desabafa. E despede-se: “Não há explicação para este horário”.

Incómodo maior tem Conceição Neto, de 73 anos. É da Marinha Grande e desloca-se com frequência à Figueira para visitar uma tia. A CP reduzi-lhe o tempo de visita. Antes podia voltar da Foz do Mondego no comboio das 18h58. Agora, o último que parte da foz do Mondego sai duas horas mais cedo. “A Figueira está mal servida”, constata. Mesmo de autocarros. Até se mostra compreensiva com a empresa: “eles também têm os problemas deles, não somos só nós”. No entanto, conta com desagrado que, há cerca de seis meses, ficou uma hora na à espera na Guia, duas estações antes de Leiria de quem vai do Norte. O transporte teve que ser feito de autocarro.

Há anos que o revisor de serviço ouve críticas semelhantes. “As pessoas estão muito desiludidas e nós servimos como pára-choques”, afirma. Tem notado um aumento de passageiros na linha, tanto “que a empresa não consegue dar resposta, principalmente no pico” de procura. A linha, para além de ligar importantes centros urbanos como Caldas da Rainha, Coimbra, Figueira da Foz, Leiria, Lisboa, Sintra ou Torres Vedras, serve também zonas balneares, como S. Martinho do Porto.

“Camionetas de Portugal”

“Teve sorte”, responde Rui Raposo, quando lhe explicamos que fizemos a viagem de ida e volta entre Coimbra B e Caldas da Rainha numa quinta-feira de Agosto, já depois da entrada em vigor dos novos horários, sem que tenha havido atrasos dignos de nota ou supressões.

O responsável diz que, mesmo depois desta “eliminação de horários, as supressões continuam”. E dá o exemplo do dia em que falou com o PÚBLICO, na passada terça-feira: “entre as Caldas da Rainha e a Amieira, os passageiros foram de táxi (assegurado pela CP). O comboio que deveria ter feito a ligação chegou com uma hora e quarenta de atraso e tiveram que se transportados em táxi”, relata. E prossegue: “Os utentes da Linha do Oeste nunca sabem se o comboio vai sair ou não”.

Este é um dos últimos episódios de um processo de degradação da Linha do Oeste que, de acordo com Rui Raposo, regista numa base “quase diária” avarias, acidentes, necessidades de revisão e supressões. “No Oeste, os Comboios de Portugal já são conhecidos como as Camionetas de Portugal”, tal é a taxa de utilização do transporte rodoviário para substituir a ferrovia indisponível.

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“É lamentável o que está a acontecer”, introduz o presidente da Câmara Municipal das Caldas da Rainha, Fernando Tinta Ferreira, considerando que “existe uma degradação continuada do serviço” dos comboios do Oeste. Para o autarca, a situação “não é útil para o país nem para a região”. Pelo contrário. Para além dos efeitos imediatos de afastamento de clientes, “desabitua as pessoas do uso da linha” e contribui para o ciclo de degradação. Também nota que, mesmo com a redução horária, “continua a haver supressões”, numa altura em que, mesmo em férias, há pessoas a querer apanhar o comboio para a praia de S. Martinho do Porto. Na sua óptica, há motivos uma “intervenção excepcional” para a aquisição de material.

Os problemas são estruturais, identifica Rui Raposo, e estão relacionados com a falta de material, mas também com a necessidade de modernização da linha. “Carece de electrificação, mas também da automatização de sinais e agulhas, bem como da modernização das estruturas das estações, que não possuem qualquer informação automatizada nas estações sobre horários ou atrasos”, denuncia. Dá também conta da ausência de membros da CP ou da IP “para dar informação ou auxílio” na grande maioria das estações.

A linha está electrificada entre Lisboa e Meleças e entre Louriçal e o troço que liga Coimbra à Figueira da Foz. Está previsto que a distância de 84 quilómetros que vai de Meleças até às Caldas da Rainha arranque no quarto trimestre deste ano, mas o projecto já vai com dois anos de atraso.

 A falta de electrificação da linha não é o único ponto que preocupa a Associação Empresarial da Região do Oeste (AIRO). O secretário-geral da entidade, Sérgio Félix, refere que o transporte de cargas pela ferrovia é mais “barato e ecológico” que o rodoviário, mas que não adianta renovar uma linha que não possa ser utilizada. Ou seja, se não se tiver em conta a conectividade com as empresas, e a possibilidade de haver circulação de pesados nas imediações.

Lembra que este é um problema com décadas, que “acabou por colocar um entrave ao desenvolvimento saudável” de uma região que poderia ser “muita mais competitiva”. Noutra perspectiva, uma lógica turística, Sérgio Félix refere que “as estações estão completamente desajustadas ao crescimento” das localidades e respectivos acessos.

No entanto, parte da Linha do Oeste até podia estar já desactivada. O primeiro Governo de Passos Coelho queria encerrar o transporte de passageiros entre as Caldas da Rainha e a Figueira da Foz. A intenção estava no Plano Estratético de Transportes de Outubro de 2011, mas um estudo encomendado pela autarquia das Caldas ajudou a sustentar a viabilidade da linha com a ligação a Coimbra e o ajuste de horários.

Apeados

A Linha do Oeste tem concentrado atenções dos partidos e sido apontada como um mau exemplo da ferrovia em Portugal. A 18 Julho, o eurodeputado comunista, João Ferreira, tentou apanhar o comboio das 18h30 para as Caldas a partir de Leiria, numa iniciativa integrada numas jornadas do PCP do distrito. O objectivo era encontrar-se com a Comissão para a Defesa da Linha do Oeste, mas o comboio foi suprimido e a viagem foi feita de autocarro.

No dia seguinte, a ironia também se abateu sobre uma comitiva de deputados e autarcas PS. Tinham igualmente o objectivo alertar para os problemas na linha e exigir soluções mas, noticiou a Agência Lusa, ficou apeada e teve que fazer o percurso entre Caldas e Lisboa de automóvel.

Mais recentemente, a líder do CDS, Assunção Cristas, tentou e ir das Caldas a Coimbra e conseguiu chegar ao destino pela ferrovia, tendo anunciado que iria pedir a presença do ministro do Planeamento e Infraestruturas Pedro Marques no parlamento.

Para responder ao problema da falta de material circulante, o presidente da CP, Carlos Nogueira, anunciou já que iria aumentar o número de comboios alugados à congénere espanhola Renfe. Sobre a aquisição de novas máquinas, estas não devem chegar antes 2021.

Rui Raposo fala em prazos mais apertados. Apesar de a transportadora ferroviária portuguesa ter informado que os horários seriam repostos em Novembro, no entender do membro da Comissão Para a Defesa da Linha do Oeste, terá de ser antes. Isto porque em Agosto, os efeitos prejudiciais da eliminação de comboios são mitigados pelo período de férias. Em Setembro e Outubro, há mais gente a precisar do serviço para se deslocar para trabalhar, estudar ou para se deslocar a unidades hospitalares. Antes de Agosto, o primeiro comboio a sair de Leiria chegava às Caldas às 8h08. Agora chega às 11h28. “Novembro é de facto tardíssimo”.

Armando Sousa entrou na carruagem ao final da manhã, em S. Martinho do Porto, estação que estava encerrada. O homem reformado de 78 anos vai ao Hospital da Figueira da Foz entre uma a três vezes por mês, para fazer tratamentos. A mudança de horário faz com que já não consiga ir de manhã. “O que saía às 6h19 dava mais jeito, mas basta mandar a consulta para a tarde”, simplifica. Lamenta no entanto as vezes que teve que andar de autocarro, que leva “o triplo do tempo”.

No dia em que o PÚBLICO fez a viagem de regresso a Coimbra B, antes de picar os bilhetes a passageiros que têm a Figueira da Foz como destino, outro revisor vai informando que terão de trocar na Amieira e depois em Verride. “Agora é assim”, suspira. com Carlos Cipriano

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