Uma mentira cristalina

Os versos foram escritos no século VII por um dos grandes poetas da dinastia Tang, Meng Haoran, mas o homem não se deixa enganar. Foram exactamente aquelas palavras que o pai do patrão escreveu numa noite de copos e tertúlia entre amigos

A bebé, pequena e de olhos muito grandes, não consegue parar quieta. Para ela, tudo é novo e misterioso, tudo é deslumbramento e descoberta. É-o a toalha de papel que rasga com avidez entre gargalhadas, é-o o rosto que sorri da mesa a pouca distância. É-o o frasco de picante a que lança a mão ou a comida acabada de chegar que fumega na travessa. A bebé, que não sabe nada, ou que sabe ainda muito pouco, entusiasma-se tanto com tudo que o pai há-de sair à rua para tentar acalmar o ruidoso entusiasmo.

O pai sabe, naturalmente, que a mudança de cenário não alterará aquela agitação. O pescoço estica-se quando a cabeça sente o vento de um pombo que passa perto, os olhos arregalam-se na direcção do som da sirene da ambulância que atravessa a avenida, o sorriso abre-se novamente quando o olhar de quem passa se cruza no seu. Tudo é novo e misterioso. Tudo é deslumbramento naquele mundo por descobrir. É-o na rua, volta a sê-lo quando o pai abre a porta para regressar ao restaurante.

A bebé continua a observar tudo com curiosidade infantil. O pai repara agora e surpreende-se por, tendo estado ali tantas vezes, nunca ter reparado antes. É que basta abrir a porta e olhar em frente. Está ali, com dimensões generosas, pendurado na parede. Talvez seja influência da bebé que carrega nos braços, do seu olhar vivo e desejoso de descoberta, mas a verdade é que, naquele momento, passa a ser a vez do pai.

No painel de fundo branco, alinham-se os caracteres bem desenhados. Ele olha-lhes as formas e admira os traços que o pincel deixou como sua assinatura no papel. Olha e volta a olhar. A curiosidade aumenta. Que dirão aqueles caracteres? Imagina qualquer coisa simples, um ditado tradicional chinês, uma mensagem de boas vindas, enfim, nada de especial. Chama um empregado de mesa para perto de si, o empregado aproxima-se, a bebé sorri outra vez de olhos arregalados perante novo rosto, novo mundo descoberto.

Explica tudo muito rápido, quase de passagem, antes de seguir caminho até a mesa de onde o chamam. “Uns amigos juntaram-se para beber um pouco e conversar à noite. Foi nessa noite que escreveram”. Acrescenta que fora o pai do patrão a inscrever no papel os caracteres e que o fizera na cidade em que o filho abriu o restaurante, Lisboa. O empregado desapareceu antes que se soubesse o principal, ou seja, o que escreveram aqueles homens chineses reunidos à volta de uns copos numa noite lisboeta. Essa imagem, contudo, foi suficiente para o homem com o bebé nos braços.

A questão é que agora sabemos tudo. Sabemos tudo sobre tudo o que somos e o que fomos. Toda a informação está disponível, límpida e cristalina, e só não sabe quem não quer. Uma pesquisa rápida e ei-lo perante nós: todos os documentos sobre todos os acontecimentos, todas as músicas de todas as eras, todos os balanços bancários de todas as crises, todos os mais ínfimos pormenores biográficos, com imagens que não mentem a acompanhar, sobre a figura de Estado, a nova estrela da literatura, a senhora do 3º direito (e até sobre o gato preto da dita senhora).

É mesmo verdade, temos tudo e sabemos tudo. Aliás, sabemos tanto sobre tudo que até inventamos o que sabemos com toda a certeza: que a Terra é plana, que o Homem nunca pisou o solo lunar, que há rastos no céu, alvos como nuvem primaveril, que são obra de governos pérfidos que nos querem controlar o pensamento. Creiam que é impossível duvidar, porque a verdade está aí e os dados disponíveis a todos. Tudo o que vemos já foi visto e pode ser revisto. Toda a novidade é um “já sabia”. Tudo o que somos, nós, cá dentro no nosso íntimo, nós, perante o olhar do outro, nós, a convivermos, a tolerarmos, a abraçarmos, a sorrirmos, a viver, a ferir, a curar e a matar, está já descrito e prescrito.

Talvez por tudo isso, talvez por ter nos braços a bebé que ri e abre tanto os olhos perante o que vê e não conhece, o homem que a carregava sentiu-se tão feliz com o que soube, como com o que se manteve misterioso depois de se ver perante aquele painel na parede em que nunca antes reparara.

Nessa noite, inventou o que lhe faltou saber. Procurou lentamente, página a página, até que o descobriu por fim.

Nas brumas, junto da ilha, amarro a barca.

Pelo crepúsculo reina a nostalgia no viajante.

Planura imensa: o céu desce sobre as árvores;

Rio límpido: a lua aproxima-se dos homens.

O livro onde o encontrou diz que os versos foram escritos no século VII por um dos grandes poetas da dinastia Tang, Meng Haoran, mas o homem não se deixa enganar. Foram exactamente aquelas palavras que o pai do patrão escreveu numa noite de copos e tertúlia entre amigos. É uma mentira cristalina, da qual é impossível duvidar.

Sugerir correcção
Ler 3 comentários