As imagens e a negritude em movimento de Martine Syms

Lessons I-CLXXX é uma breve mas suculenta introdução à prática multiforme da artista californiana - para ver em Serralves até finais de Setembro. E é também a sua “epistemologia”, a sua tentativa de encontrar um lugar na herança cultural negra americana.

Piso, Serviços de Interiores, Revestimento de madeira, Piso laminado
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Filipe Braga
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Martine Syms (n.1988) cresceu entre a internet e a comunidade punk de Los Angeles, entre o design gráfico e o cinema experimental (realizadores e artistas multimédia como Ximena Cuevas, Luther Price e o colectivo Black Audio Film eram, para ela, referências “punk as fuck”). Tudo isso atravessa Lessons I-CLXXX, a primeira exposição da artista americana em Serralves, em agenda até 30 de Setembro. Há uma sucessão constante e fragmentada de vídeos lo-fi aparentemente desconexos, de uma crueza e familiaridade que remetem para o consumo caseiro, omnívoro e ligeiramente obsessivo do YouTube, cadeiras com frases-manifesto e papel de parede intensamente roxo (ou “purple heavy”, como ela prefere dizer) com a palavra “girl” escrita de várias formas.

Lessons I-CLXXX, comissariada pelo novo director do Museu de Serralves, João Ribas, no âmbito do eixo de programação Projectos Contemporâneos, é uma breve mas suculenta introdução à prática artística multiforme de Martine Syms. A partir do cruzamento entre vídeo, performance e semiótica, os barroquismos e as paranóias da internet, a cultura popular americana e as ideias de pensadores radicais negros, Syms explora o modo como a identidade, a representação, a memória e a tradição são moldadas pelas fronteiras sempre em tensão entre a cultura, a publicidade, o espaço social e económico, a esfera pública e privada.

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Martine Syms (n.1988) cresceu entre a internet e a comunidade punk de Los Angeles, entre o design gráfico e o cinema experimental Filipe Braga

Fá-lo com a destreza teórica e prática de uma artista millennial pouco preocupada com as definições estabelecidas entre “baixa e alta cultura” – ela sabe que tanto pode encontrar matéria para reflexão e criação nas redes sociais ou nos reality shows da MTV como em escritos feministas e anticolonialistas de autores como Fred Moten, Rebecca Walker, Simone Browne ou Kevin Young. Foi, aliás, a obra deste último que lhe deu o impulso para começar o projecto que viria a dar origem a esta exposição. “Em 2014, a convite de um museu de Minneapolis [Walker Art Center], fiz uma performance chamada Black Vernacular: Lessons of The Tradition. Parti do livro do poeta Kevin Young The Grey Album: On the Blackness of Blackness, que fala sobre como a arte feita por negros está no centro daquilo que é a cultura americana”, explica a artista ao Ípsilon. “Usei as cinco lições que ele formula durante o livro para estruturar a performance.”

Entretanto, foi convidada a fazer vídeos para cada uma das lições. O objectivo inicial era construí-los como anúncios de televisão, para passarem em espaços publicitários (o que acabou por acontecer em Times Square). Contudo, o plano foi crescendo e ganhando outros contornos. “Terminei os primeiros cinco e percebi que havia muitas mais lições. Fiquei interessada neste tipo de estrutura de clipes com 30 segundos, e decidi fazer 180 de forma a ter um filme de 90 minutos”, diz Martine Syms. “Demorei quatro anos para acabar tudo. Serralves é o primeiro sítio onde o filme é mostrado finalizado.”

Este arquivo – composto sobretudo por filmagens feitas pela artista mas também por vídeos respigados do YouTube, Vines e programas de televisão dos anos 80 – é projectado em três ecrãs segundo um algoritmo programado para impedir a repetição de um clip na mesma sequência. Apesar de a estrutura se desenvolver de forma aleatória, não-linear e quebrada, o trabalho de direcção e edição de Syms acaba por gerar uma reflexão bastante consistente e expandida sobre as representações da negritude na cultura popular americana, e como esta é internalizada, incorporada através de imagens e negociada no espaço social e pessoal. Vemos, por exemplo, trechos de vídeos de Stevie Wonder e de outros músicos da Motown, de desportistas afro-americanos ou filmagens do quotidiano da própria artista.

“Isto é muito a minha epistemologia. Em última análise, estas lições são para mim como um livro de auto-ajuda. Estava interessada em colocar-me numa timeline da tradição e da herança cultural negra e perceber o que isso significa”, nota Syms. O trabalho é “altamente referencial”, funcionado como um índice. “Cada lição tem uma componente textual associada. Fui buscar coisas a escritores como James Baldwin, frases sobre o caso do Trayvon Martin [jovem assassinado a tiro em 2012, na Florida, simplesmente por ser negro] ou apontamentos nos meus blocos de notas.” Na exposição, as cadeiras materializam parte destes textos. “São cadeiras funcionais, a ideia é as pessoas terem onde se sentar para ver os vídeos. Mas também dão corpo à relação entre texto e imagem, que é muito importante para mim.”

Make them see you”, “Stop protecting yourself”, “Who is going to grab my booty?” são algumas das frases inscritas nas cadeiras, numa alusão a temas como o racismo, a supremacia branca, o olhar branco que domina o mundo da arte, o feminismo. “Acho que tento não impedir-me de fazer algo porque poderá ser contraditório com as minhas visões políticas, mas obviamente que tudo o que faço é moldado pela realidade política, económica e social”, observa Syms.

Nesse sentido, colocar a mulher negra, incluindo a si mesma, no centro dos seus trabalhos, é também uma forma de reclamar espaço num circuito artístico onde os discursos e as subjectividades das pessoas não-brancas foram sendo historicamente subalternizados. Mas vai além disso. “Claro que há essa posição enquanto mulher negra, mas de forma mais ampla estou interessada no que é o ‘eu’. Como a fotografia, o vídeo e a tecnologia da imagem têm alterado a concepção sobre nós próprios e como dispersa pode ser a ideia de identidade.”

Também a recorrente utilização da cor roxa, que já se tornou numa marca de Martine Syms – as faixas nas paredes integraram uma outra exposição da artista no MoMA –, partiu da questão identitária para sustentar outro tipo de reflexões. “Acho que isto do roxo começou por causa do filme de adaptação do livro da Alice Walker, The Color Purple. Estava interessada nesta transição de um romance sobre a feminilidade negra para um filme de Hollywood realizado por um homem branco [Steven Spielberg] e tudo o que acontece nessa passagem”, explica a artista. “No livro, a cor roxa representa um espaço liminar entre o mundano e o espiritual. Decidi que no meu mundo, a imagem em movimento seria o espiritual, uma espécie de deus.”

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