A ideologia do risco digital

Em definitivo, a ideologia do risco digital avisa-nos de que precisamos de colocar limites de natureza regulatória, bioéticos e biopolíticos.

Um dos pontos críticos da atual transformação digital é a chamada “ideologia do risco digital”. A filosofia dominante diz-nos que o capitalismo liberal, a sociedade digital e o estado-plataforma formam uma axiomática dos sistemas auto-regulados. Neste contexto tridimensional, os sistemas inteligentes, automáticos e autónomos tomam a seu cargo o essencial da regulação do risco digital. De fora, ficariam a política, o humano, a indeterminação, o acaso, o erro, o afeto. O “solucionismo” tecnológico e digital seria, portanto, a chave para todos os problemas. Esta dogmática dos sistemas inteligentes e auto-regulados, coberta de sedução, deslumbramento e normativismo digital, é tão ideológica como qualquer outra. Na sua retaguarda está, porém, um grande supermercado planetário e uma vanguarda de híper-plutocratas que promovem o seu negócio digital como uma grande promessa de futuro, logo inquestionável e ideologicamente abrangente e compreensiva.

Cá em baixo, mais próximo da realidade material, cava-se uma economia dual cujos custos de contexto é preciso reduzir tanto quanto possível. De um lado, temos uma economia digitalizada, mas minoritária, de outro, uma economia receosa de ver a sua atividade uberizada, muito expectante e ainda largamente maioritária. Digamos que, com a revolução digital, voltámos ao período nómada do capitalismo, desta vez o nomadismo digital, enquanto aguardamos pela formação de “uma classe média digital”, mais sedentária e socialmente mais enraizada. É aqui que a ideologia do risco digital precisa de um pensamento mais crítico, politicamente orientado, no sentido de uma narrativa mais pedagógica e terapêutica, mas diligente, em matéria de modernização e inovação tecnológica e digital.

Entretanto, a transformação digital acelerada muda radicalmente a natureza do capitalismo, seja as relações entre empresas (mais e menos digitalizadas), no interior do sistema financeiro (mais e menos capital de risco) e nos poderes públicos (mais e menos estado-plataforma) ou o mercado laboral (mais e menos intermitência) e a proteção social (mais e menos descontinuada). No terreno, a transformação digital é uma sucessão de pequenos/grandes incêndios que se declaram nas fileiras e cadeias de valor e que os poderes públicos se esforçam por apagar quase sempre sem grande sucesso. Vejamos, então, alguns tópicos desta ideologia do risco digital que nos parecem mais pertinentes nesta altura.

A ideologia do risco digital

1. A atomização digital aumenta o risco de colisão e, portanto, o risco moral

Toda a transformação digital caminha no sentido de uma rede mais descentralizada e distribuída, com maior conetividade e interatividade, logo em direção a uma interdependência máxima; à medida que a transformação digital progride da internet das relações para a internet das coisas aumentam, também, os episódios e os incidentes fortuitos e ocasionais, assim como a marca impressiva da nossa pegada digital, ou seja, agrava-se a personalização do risco. Na outra face da moeda podemos, porém, dizer: quem não deve não teme!

2. Na economia digital aumenta a intermitência no trabalho

O risco de intermitência do trabalho aumenta extraordinariamente. E poderíamos acrescentar, aumenta, igualmente, o risco de solvabilidade do trabalhador intermitente, que eu já designei como “os novos pronetários do capitalismo digital”. Com efeito, não é apenas a intermitência e a precariedade contratual, é, também, a redução dos salários e a desconsolidação da proteção social e dos direitos sociais; se pensarmos na pressão sobre o mercado imobiliário nas grandes cidades, que estratificação social e ocupação da cidade estaremos nós a produzir? Na outra face da moeda podemos sempre dizer: mais liberdade contratual, mais pluriatividade e plurirrendimento é um imenso campo de oportunidades.

3. Os idiotas úteis nos mercados biface e o tráfico da nossa privacidade

O risco de perda de privacidade é real e efetivo. As grandes plataformas digitais trabalham com a economia das multidões, digamos que há uma aliança com a multidão que se desenvolve através de várias aplicações e funcionalidades de tal modo que os utilizadores se transformam em ativos da própria organização; a montante, somos facilmente seduzidos uma vez que essas aplicações oferecem serviços muito variados e praticamente gratuitos; a jusante, com a nossa benevolência, os nossos dados pessoais são recolhidos, tratados e normalizados e vendidos a terceiros no mercado publicitário. No final, podemos sempre dizer que se trata de servidão consentida e voluntária e em que, apesar de tudo, a utilidade supera o idiota.

4. Os rendimentos crescentes de escala e a formação de quase-monopólios

O risco de monopolização está inscrito na lógica das multidões. As grandes plataformas tecnológicas usam a infraestrutura da internet para chegar rapidamente às grandes multidões. Como dissemos, as multidões são, para já, os seus melhores aliados. Os seus rendimentos crescentes de escala transformam-nas rapidamente em atores transnacionais e grandes conglomerados técnico-industriais. Neste contexto, não há política regulatória nacional que resista às suas investidas e aos seus investimentos, razão pela qual entidades como a União Europeia e o mercado único digital são o enquadramento adequado para lidar com esta evidência. Além disso, na outra face da moeda, estou convencido de que não se trata apenas de um risco regulatório, ao modo convencional, mas, antes, de uma oportunidade única para explorar uma política de regulação avançada, conduzida, desta vez, ao nível da governação global.

5. A extra-territorialidade, a evasão e o direito internacional aplicável

O risco de extra-territorialidade e planeamento fiscal agressivo existe mesmo. Na mesma linha de raciocínio anterior, se é necessário revisitar a teoria da soberania territorial à luz de um novo direito internacional da cooperação, não podem os estados nacionais ser transformados em variáveis endógenas, elas também de carácter tecnológico, de um sistema auto-regulador em que a economia das plataformas e a governamentalidade algorítmica jogam o papel principal. A situação atual não resulta apenas de um vazio regulatório em matéria de concorrência, trata-se, antes, de ausência de política industrial, tecnológica e científica em primeira instância. Enquanto não se desfaz o tabu da nova política industrial, até lá combate-se a evasão fiscal e o abuso de posição dominante com multas e contraordenações, numa espécie de jogo do rato e do gato.

6. A uberização acelerada, a política industrial e o direito de falências

O risco de uberização acelerada existe e pode acontecer de forma descontrolada e caótica. Nesta matéria as start-up já caminham a passo rápido nessa direção. Mais uma vez, é à política industrial da era digital que cabe desenhar o policy-framework da nova fase, com deliberações políticas fundamentais no que diz respeito à formação de “campeões europeus e campeões nacionais” em matéria digital e sua cooperação com os conglomerados de Sillicon Valley. Nesta linha de orientação um papel decisivo cabe ao novo direito de falências e recuperação de ativos, no sentido de uma reentrada imediata dos ativos falidos no processo de reestruturação industrial e empresarial.

7. O risco de colapso das instituições da democracia política representativa

Este risco existe e a sua eventualidade cresce à medida que os “nativos digitais” tomam conta da governação política, social e empresarial. Está em causa o desenho, as missões e as funções do novo espaço público à medida que as plataformas tecnológicas e digitais vão fazendo a demonstração de que são muito mais eficazes a gerir os assuntos públicos e que, nessa medida, o velho estado-silo, corrompido, obeso e clientelar está completamente ultrapassado. De facto, estamos em trânsito, chegou a hora das velhas instituições e administrações da democracia representativa fazerem prova de vida. A partir de agora, temos, de um lado, as novas plataformas e aplicações das democracias participativa, direta e interativa e, do outro, os terminais móveis e inteligentes das multidões. Este é o processo de digitalização em curso, quanto à qualidade “do político e da política”, essa é outra discussão que teremos de fazer rapidamente e em força.

8. O contencioso, a arbitragem extra-judicial e a judicialização do risco digital

O risco de judicialização excessiva existe. Disse logo no início que a atomização digital aumenta o risco de colisão e, portanto, a iminência do risco moral. Eu diria que para descobrir o “passageiro clandestino” do nosso universo digital será, talvez, necessário inventar uma espécie de “caçador furtivo digital”. Com efeito, as redes descentralizadas e distribuídas aumentarão a conetividade e interatividade das nossas relações e, também, a zona de conflitos, equívocos, agressões e ameaças de todo o tipo. O direito e a justiça de uma maneira geral estarão obrigados a fazer uma grande evolução no que diz respeito aos processos de contencioso de responsabilidade, arbitragem extra-judicial e judicialização de conflitos de interesse, sob pena de o risco digital nesta matéria se transformar num verdadeiro inferno tangível e material. As mudanças no sistema de justiça e a cooperação judicial serão um bem comum inestimável.

9. O hacker lobo solitário, o cibercrime e a guerra cibernética

O risco aqui é elevado e iminente e a solução proposta é, geralmente, a troca de liberdade por segurança, seja lá o que isso for neste contexto. De um simples vírus informático posto a correr por um hacker talentoso até ao cibercrime organizado correndo na internet subterrânea e passando pela guerra cibernética entre grandes sistemas de inteligência e segurança, tudo é possível de ora em diante. Neste contexto, a liberdade e a privacidade pessoal dos cidadãos nem sequer servirão como moeda de troca, pois nessa altura a segurança nacional e a segurança do estado tudo justificarão. Mais uma vez, pequenos Estados como o nosso estarão completamente à mercê da guerra das inteligências. Cabe à União Europeia, no quadro do mercado único digital e de uma política comum de cooperação policial e judicial, criar as condições para uma paz digital nesta matéria. É um bem comum inestimável.

10. O risco desencadeado pelos sistemas inteligentes, automáticos e autónomos

E chegamos ao risco desencadeado pelos sistemas inteligentes, automáticos e autónomos. São tantos e tão diversificados os dispositivos inteligentes e automáticos – um simples objeto caseiro que nos torna prisioneiros na nossa própria casa, um drone transformado em caçador furtivo, um sistema automático de guerra com prontidão imediata – que tudo isto será um mercado potencial gigantesco para as empresas de segurança e companhias de seguros, De resto, quero crer que não tardará a ser proposto, pelas companhias de seguro, uma nova apólice de seguro contra os incidentes provocados por estes dispositivos tecnológicos. Vai ser interessante verificar como irá funcionar nestes casos o princípio da precaução e como se desenrolará a discussão de “quem cuida de quem” no que diz respeito aos deveres dos cuidadores.

Notas Finais

Uma das facetas mais intrigantes do próximo futuro é aquela que diz respeito à “aceleração e divisibilidade tecnológicas” e sua transferência para os domínios da liberdade individual e da vida quotidiana. Refiro-me à transformação de necessidades individuais, de desejos pessoais e de serviços públicos em objetos de consumo industrial que, doravante, ficam ao alcance e ao dispor da “internet das coisas”, da conexão generalizada e da indústria de serviços personalizados.

Por outro lado, a conversão da “indivisibilidade de um serviço público, coletivo ou social” na “divisibilidade de um objeto privado” produzido pelo mercado e tornado possível pelo avanço tecnológico, pode provocar uma verdadeira revolução na oferta pública convencional via aparelho de Estado. Os serviços públicos prestados pelo Estado e outras coletividades via imposto seriam, então, progressivamente substituídos por objetos privados prestados por empresas via preço. O Estado seria progressivamente reduzido à sua dimensão mínima.

Em contrapartida deste Estado-mínimo no plano social teríamos, porventura, um Estado-hiper-vigilante no plano securitário que, no limite, nos poderá transformar numa comunidade hiper-vigilante de sensores convertidos numa espécie de “censores furtivos”, porventura nas mãos de gente menos recomendável.

Em definitivo, a ideologia do risco digital avisa-nos de que precisamos de colocar limites. A responsabilidade pública e política advém da aprendizagem e da consciência desses limtes. Limites de natureza regulatória, em primeira instância, para recuperar receitas fiscais evadidas para paraísos extra-territoriais e, também, para segmentar, se necessário, grandes conglomerados tecnológicos e digitais que abusam da sua posição dominante. Limites bioéticos e biopolíticos, finalmente, para impedir que uma plataformização excessiva e uma governamentalidade algorítmica abusiva acarretem danos irreversíveis para a organização da sociedade humana.

Finalmente, a par da revolução digital, nós estamos ainda necessitados, à semelhança do que aconteceu no século XIX, de uma verdadeira revolução na filosofia política e social, nas ciências humanas e sociais, nas artes e na cultura, tendo em vista repolitizar e policontextualizar o ciberespaço do universo digital. Estou certo de que ninguém quererá assistir ao regresso do ludismo e dos “ludditas” no século XXI.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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