“Com a nossa renúncia, pretendemos evitar mais uma guerra”

Presidente cessante da federação de râguebi lamenta o clima que se vive na modalidade e a prioridade dada aos interesses individuais dos clubes, mas garante que deixa um legado melhor do que aquele que recebeu.

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Rui Gaudencio

Para Luís Cassiano Neves, não havia outro caminho que não a demissão do cargo de presidente da Federação Portuguesa de Rugby (FPR), depois da revogação da decisão que implicava a despromoção de Agronomia e GD Direito ao último escalão. O agora líder cessante do organismo lamenta o clima de falta de cooperação e a incapacidade de atender ao interesse geral da modalidade que grassa no país.

Por que motivo apresentou a demissão de presidente da FPR?     
A renúncia surge como reacção imediata ao desenrolar do processo que terminou com a decisão do Conselho de Justiça (CJ). Não é um ataque à decisão - temos que aceitar a autonomia desse órgão jurisdicional -, mas sobretudo por consideramos ser o culminar de uma postura de facções da comunidade raguebística relativamente ao que são os nossos valores e à necessidade de cumprimento dos regulamentos. Continuamos a defender o processo que levou à decisão da direcção da FPR, assente em factos apurados pelo Conselho de Disciplina (CD). Reconhecemos que os regulamentos têm deficiências graves e essa questão foi suscitada pela minha direcção em Assembleias Gerais (AG). Procurámos conduzir o processo de forma transparente, aproximando-o daquilo que são os princípios de defesa que devem ser garantidos às equipas e aos jogadores que foram objecto desta acção. Lamentamos que o CJ venha desfazer um processo moroso e bem fundamentado com princípios genéricos que não concretiza, e que no meio de todo este imbróglio e deficiências jurídicas se tenha perdido a defesa dos princípios da modalidade, passando uma esponja sobre factos gravíssimos e inéditos, que não podiam ter ficado por castigar. A responsabilidade institucional também não pode morrer sozinha e a direcção sentiu a necessidade de assumir responsabilidades. Para além disto, no último ano tínhamo-nos batido por uma visão estratégica assente em decisões de natureza financeira que foram rejeitadas duas vezes em AG. Já tínhamos anunciado que considerávamos que o nosso projecto político, por não ter congregado apoios junto da comunidade, estava esgotado.

Não recorreu porquê?
A renúncia não significa qualquer falta de solidariedade para com o CD. Faço um agradecimento público ao seu presidente, Marcello D’Orey, que teve uma acção ímpar. Foi proactivo, rápido e independente. O râguebi pode orgulhar-se de ter tido um CD liderado por um homem que marcou a sua actuação pela independência e rigor. Não recorremos porque a certa altura temos que entender a quem aproveitam as guerras. O râguebi português está em conflito aberto há sete ou oito anos. O último mandato antes do nosso ficou marcado pela virulência e pelo antagonismo. Enquanto direcção, reconhecemos que não tivemos capacidade para congregar as pessoas em torno de uma ideia. Ao nosso recurso, seguir-se-iam certamente outros de quem considerasse estar a ser prejudicado. Com a renúncia, pretendemos evitar mais uma guerra no râguebi. Entre defender a nossa posição e visão ou defender a modalidade, chegou a altura de dar a oportunidade a que o râguebi encontre alguém que tenha a capacidade de congregar a maioria em torno de uma ideia de construção. Com os actores actuais, acho difícil. Mas depois deste momento catártico, espero que o râguebi consiga reconstruir-se.

Que imagem fica do râguebi português após os incidentes no Agronomia-Direito e o volte-face no processo?
Nas duas últimas AG  alertámos de forma formal para o aumento dos incidentes disciplinares. Dissemos que havia um recrudescimento alarmante das circunstâncias em que dirigentes e jogadores não cumpriam as regras disciplinares e, acima de tudo, o código de conduta do râguebi. Quem não aceitar e não assumir responsabilidade por este movimento que nos afasta dos nossos valores não presta um bom serviço à modalidade. Se recorrêssemos, abriríamos mais uma frente de guerra. Durante muito tempo evitámos polémicas e expor publicamente situações preocupantes de falta de adesão aos nossos valores. Quando tentamos inverter essa situação, vimos que se, por um lado, não defendemos o râguebi ao tentarmos resolver o problema dentro de portas, por outro não temos a capacidade de congregar as pessoas em torno do nosso projecto e evitar uma guerra quase civil. Nesse sentido, o que sentimos que melhor servia o râguebi era exprimirmos a nossa discordância apresentando a renúncia.

Fala num aumento dos incidentes disciplinares. A que se refere?
Alguns meses após a nossa tomada de posse, numa final organizada pela federação, houve uma agressão à minha pessoa por parte de um dos dirigentes dos clubes que participou nessa final. Uma agressão que ocorreu em frente a um vereador de uma câmara municipal. Tinha acabado de tomar posse, mas já na altura senti que era inadmissível. Nunca me foi apresentado um pedido de desculpas formal e eu também nunca apresentei um processo disciplinar.

Porquê?
Se o fizesse, estaria a abrir mais um canal de guerra quando o râguebi precisava de pacificação. Cometi o primeiro grande erro do nosso mandato ao nada ter feito. Em retrospectiva, vejo que só tinha duas coisas a fazer: ou apresentava a renúncia ou abria o processo disciplinar competente. Fiz o que muita gente queria que agora fizéssemos: varrer para debaixo do tapete. O râguebi não ganhou nada com isso.

O que houve de diferente no Agronomia-Direito que justificasse um castigo tão pesado para os clubes?
Ocorreram diversos incidentes, mas ou não constaram do relatório do árbitro com a mesma clareza ou não foram captados por imagens que pudessem ser consideradas para efeitos de processo disciplinar. E, principalmente, não levaram à interrupção definitiva do jogo. Seguramente pela primeira vez em Portugal, desde há muito tempo, questões relacionadas com agressões dentro do campo levaram à interrupção definitiva de um jogo antes de se cumprir o tempo regulamentar. Por aquilo que resultava do relatório do árbitro e das imagens que foram solicitadas aos dois clubes, houve matéria com enquadramento regulamentar como nunca houvera em Portugal. Não tenho nenhuma dúvida de que, após a interrupção antecipada do jogo, a federação fez o que lhe competia.

Uma das acusações que lhe é feita é de não ter havido um árbitro nomeado para esse jogo.
É mais uma das matérias que fomos evitando comentar. Os regulamentos são inequívocos em considerar que não havendo um árbitro nomeado, há a possibilidade de eleger um árbitro nas bancadas. O râguebi português tem um historial perante greves de árbitros em 2014 e 2015, ainda na vigência da anterior direcção, onde as competições também prosseguiram. Na semana que antecedeu as meias-finais, vínhamos falando com o Conselho de Arbitragem (CA) e a Associação Nacional de Árbitros de Rugby (ANAR). Julgávamos que a situação estava controlada. Na altura estavam em falta cerca de oito mil euros, correspondentes a quatro mil do reembolso de despesas e quatro mil euros de prémios em dívida. Para que se tenha uma noção, quando chegámos à FPR, em 2015, pagaram-se 23 mil euros aos árbitros. Os árbitros já tinham dívidas acumuladas de montante muito superior àquele que se verificava naquela data. Vários árbitros têm dito em AG que nunca como no último ano tiveram o pagamento dos reembolsos de forma tão atempada.

Sendo assim, o que correu mal?
Na segunda-feira anterior às meias-finais, não tínhamos qualquer comunicação de greve ou indisponibilidade. Quando começámos a perceber que podia haver algum problema, já era quarta-feira. O presidente do CA e os responsáveis pela ANAR estavam fora do país e quando tentámos arranjar alternativas já era tarde, até porque a requisição de árbitros a Espanha ou França teria que ser feita através do CA. Na quinta-feira de manhã enviámos um email aos árbitros a explicar que o reembolso das despesas em dívida, no valor de quatro mil euros, seria feito. Essa transferência foi efectuada ainda antes das meias-finais. Não conseguimos demover a classe da sua intenção, apesar de ter feito contactos com alguns árbitros que tiveram dificuldade em explicar o porquê da indisponibilidade. Os árbitros nunca tiveram os reembolsos das despesas pagos de forma tão atempada. O que se passou é que escolheram aquela altura para tomarem, legitimamente ou não, uma posição politica.

Contra si?
Tive sempre uma relação, do ponto de vista pessoal, boa com o CA, mas do ponto de vista instituição não foi uma relação fácil. A verdade é que é justo reconhecer que os árbitros no último ano e meio gozaram de condições financeiras como há muito não tinham. Passaram a ter os reembolsos das suas despesas pagos no mês seguinte à apresentação das despesas. A certa altura disseram-nos que o que estava em causa não era o dinheiro, mas a valorização da classe. Após ter feito mais de dez propostas formais, cheguei à conclusão que a única questão relevante que pretendiam discutir era a remuneração de quatro pessoas: do presidente do CA, do António Moita, do Nuno Coelho e do Álvaro Corsan. Os recursos que consumiam eram suficientes para se construir um corpo mais plural para se fazer a observação, o acompanhamento e a avaliação dos árbitros. Estas quatro pessoas foram responsáveis por essas áreas nos últimos anos e não conhecemos nenhum tipo de avaliação feita aos árbitros de forma formal e pública, muito menos uma classificação que resultasse dos processos de avaliação. Estabelecemos desde o início como prioritário haver uma classificação qualitativa dos árbitros. Esse processo foi sempre mal recebido pelo CA e julgo que também pela ANAR. O que pretendíamos era que fosse constituído um corpo autónomo, remunerado por cada intervenção, sob orientação do CA, mas que envolvesse as associações regionais para haver maior controlo de qualidade. Nada disso se conseguiu materializar. Formalizámos medidas para reestruturar o sector. Conseguimos envolver os clubes que nomearam mais de 50 pessoas para árbitros auxiliares. A verdade é que estas medidas foram boicotadas. Que tenha conhecimento, apenas dois destes árbitros foram nomeados para apitar jogos. Os árbitros tiveram equipamentos novos como nunca nos últimos anos. Do ponto de vista financeiro, olhando para mandatos anteriores, também nada podem dizer. O que resta é a tabela de premiação dos árbitros e a remuneração perdida por quatro pessoas influentes.

A indisponibilidade dos árbitros para as meias-finais foi comunicada aos clubes?
Contactei os presidentes dos clubes na sexta-feira. No que diz respeito ao jogo Agronomia-Direito, fui acompanhando as diligências que as equipas foram fazendo para a nomeação do árbitro. O GD Direito, um dos clubes envolvidos, apresentou agora um recurso da decisão da FPR no TAD, onde alega que teria sido o presidente da federação a escolher sozinho o árbitro e a insistir para que o jogo se realizasse. Não escondo que defendi que o procedimento devia ser o prosseguimento das competições, mas na véspera do jogo recebi uma mensagem do presidente do GD Direito, Luís Filipe Morais, em que me dizia o seguinte: “Nós vamos resolver e arranjar solução para as meias e para a final. A final já está resolvida. Adiar não é solução.” Portanto, os dois clubes chegaram a acordo em relação à pessoa que devia apitar o jogo, com o conhecimento e aceitação da federação. Quem foi escolhido tem o curso de árbitro e já apitou diversos jogos oficiais. Sem querermos rejeitar as nossas responsabilidades, parece-me que não é justo e honesto dizer que o que se passou no Agronomia-Direito sucedeu por causa do árbitro. Com ou sem árbitro, jamais o râguebi pode tolerar situações de agressões gratuitas entre jogadores, que depois transbordaram para fora do campo.

Quando a federação anunciou a atribuição do título ao Belenenses, o relator do acórdão do CJ, António Folgado, criticou a decisão, falando em “disparates e garotadas de alguém que é supostamente especialista em Direito Desportivo”…
Tive conhecimento já tarde dessas críticas. Penso que o dr. António Folgado reconhecerá que se excedeu e que no exercício das suas funções não poderia ter feito as críticas que fez. Ele considerou que estava em condições de decidir. Tendo a minha opinião pessoal, como prescindi do direito de recorrer, não devo dizer muito mais sobre o assunto. Se o fizesse, seria em sede própria.

Como jurista, que análise faz do acórdão do CJ?
Tenho um enorme respeito pelo dr. José Guilherme Aguiar. Sendo uma decisão que ele também assina, quero evitar tecer comentários de natureza jurídica. Parece-me, no entanto, que algures no labirinto do processo e das regras formais, perdemos de vista aquilo que se passou naquela tarde de 28 de Abril, e que com esta decisão o râguebi perde uma oportunidade única de demonstrar que é de facto uma modalidade de valores, onde as regras são cumpridas. Questão distinta é saber se, em face daquilo que era a decisão da direcção em cumprimento dos regulamentos, não havia uma necessidade de posteriormente o râguebi, enquanto comunidade, entender que haveria de fazer um juízo de adequação. Mas esse juízo de proporcionalidade não podia ser feito numa fase em que estavam em causa os regulamentos e a sua aplicabilidade. Li a decisão do CJ e tenho dificuldade em entender onde discorda do CD e da federação. Receio que o râguebi possa ter caído na armadilha de arranjar uma solução consensual na defesa de dois enormes clubes portugueses. Espero que desta decisão não resulte para o futuro uma sensação de impunidade. Muitos dos regulamentos em Portugal eram letra morta e o râguebi precisa de dar um passo em frente.

As principais críticas que lhe são dirigidas vão para o desempenho das selecções. Considera-as justas?
Aceito que a nossa actuação não está isenta de erros, mas acho engraçado notar que a memória colectiva modela-se em função das circunstâncias. Quanto tomamos posse, a meio da época 2015-16, perdemos mais de metade dos patrocínios. Não foram negociações nossas, nem foi em função da nossa actuação enquanto direcção. Fomos confrontados com uma quebra de receitas que, veio depois a verificar-se, resultou em menos um milhão de euros. A nossa capacidade financeira para fazer face às exigências das selecções nacionais ficou reduzida drasticamente. Tínhamos uma dívida acumulada grande, incluindo aos atletas profissionais que jogavam fora de Portugal, o que causava mal-estar. Quando chegámos, pagámos algumas dessas dívidas, mas houve a necessidade de efectuar cortes na estrutura de apoio e, por isso, numa primeira fase, deixámos de contar com a quase totalidade dos jogadores que actuavam fora do país. Evidentemente, a qualidade da nossa selecção desceu. No entanto, do ponto de vista desportivo, no Rugby Europe Championship, Portugal já vinha perdendo sucessivamente jogos antes de entrarmos em funções. Em 2015, ainda com a anterior direcção, apenas conseguimos ganhar à Alemanha, em Lisboa, por 11-3. A tendência da Alemanha se aproximar era evidente e era um adversário que, com a força da injecção de um a dois milhões de euros por ano de um investidor privado, estava a começar a recrutar jogadores sul-africanos. Há também um contexto de regulamentação que muda todo o panorama. Quando entrámos em funções, ainda havia descidas directas. O último classificado do Championship descia automaticamente. Depois, no campeonato seguinte, apesar de Portugal ter vencido o Trophy, não teve direito a promoção automática e teve que disputar um play-off no campo do adversário. Foi uma alteração regulamentar aprovada durante o mandato anterior que nos penalizou bastante.

Voltar a contar com todos os profissionais que actuam fora de Portugal é uma questão meramente financeira?
O que nos divide muitas vezes é o choque de realidades. É errado pensar que é apenas uma questão de dinheiro. Nunca um jogador profissional abordou a federação dizendo que quer receber para representar a selecção nacional. É evidente que sabemos que, quando queremos contar com jogadores profissionais, há uma logística associada a viagens e estadias, de compensação por remuneração perdida e de seguros para coberturas de riscos, que se reflecte no final do ano em dezenas de milhares de euros e que a federação acaba por não ter. Existe também uma distância entre a realidade técnica e de contexto profissional que eles vivem. Com satisfação, ouvi agora jogadores, como o Jean Sousa ou o Francisco Fernandes, dizerem que houve melhorias substanciais na forma como conseguiram integrar-se nos trabalhos da selecção na preparação do jogo com a Alemanha. Essa foi uma pequena vitória. Os jogadores profissionais precisam de condições de trabalho que implicam capacidade financeira. E esse é dinheiro que ou conseguimos assegurar, ou vai para dívida no final do ano. Não foi uma opção da federação de não querer ganhar jogos ou por ser xenófoba. Foi por reconhecer que, por vezes, não há condições para receber os jogadores como devem ser recebidos.

Houve indicações por parte da federação para o seleccionador não convocar algum jogador que actua no estrangeiro?
Sempre houve indicação para convocar os melhores disponíveis. Os que vieram foram os que responderam positivamente às convocatórias.

Para os que não responderam positivamente, a federação tinha a opção de utilizar os regulamentos a seu favor. Não o fez porquê?
É uma opção que não pode ser vista do ponto de vista meramente técnico. Tem que ser vista também do ponto de vista político e estratégico. Existe um historial grande de aferir da disponibilidade dos jogadores e, em função dessa disponibilidade, fazer as convocatórias. Portugal tem mantido essa política. Para exigir deve ter-se a garantia que se pode dar condições mínimas. A federação, nesse aspecto, é refém da sua situação financeira. Esse é o problema que se tem que resolver antes de todos os outros. A resolução dessa questão desbloqueará todas as outras.

A variante de sevens é outra das questões dependentes da situação financeira ou não foi uma aposta?
Quando assumimos funções, tínhamos acabado de falhar o apuramento para os Jogos Olímpicos, com o investimento mais significativo de sempre feito nos sevens. Perdemos no torneio de repescagem, disputado em Portugal, contra selecções como a Rússia e a Lituânia. Nesse ano, no Circuito Europeu, a selecção nacional alcançou um 5.º, um 7.º e um 9.º lugares. Havia o apoio da World Rugby e do Comité Olímpico Português e contávamos com os nossos melhores jogadores, dando total prioridade aos sevens. A verdade é que os resultados já aí eram decepcionantes…

Voltar a ver Portugal no Circuito Mundial é uma utopia?
Em 2015, a World Rugby dava 150 mil libras a Portugal para subsidiar a permanência no Circuito Mundial. Esse valor dava apenas para cobrir os salários do treinador e do team manager. Após falharmos o apuramento olímpico, houve também a saída da Santa Casa, o patrocinador principal. Era um contrato de 150 mil euros por ano. Ficámos com a Super Bock, que manteve fielmente o seu apoio, mas com um contrato reduzido que não dava para fazer face às despesas de participação. Tenho ouvido falar pessoas importantes do râguebi português, como o Arq. João Paulo Bessa, cuja opinião sempre considerei muito, que apontam para o imperativo da excelência nas representações das selecções nacionais. O problema é que isso representou um acumular de dívida nos sevens e no XV a que ainda hoje temos que fazer face. E, nos resultados, não nos aproximámos da elite. Esta direcção assumiu de forma realista a nossa incapacidade para fazer face a todas as exigências financeiras, traçando metas, objectivos e prioridades. Pode haver ou não concordância com essas prioridades. Não me quero pronunciar sobre se a prioridade deve ser dada ao XV ou aos sevens. Há virtudes nas duas argumentações. Mas Portugal, neste momento, não tem capacidade para ter uma das selecções a jogar ao mais alto nível, quanto mais nas duas variantes… O râguebi vive ainda o fulgor da globalização. Há países que há 10 anos quase que não existiam no mapa raguebístico mundial, como o Brasil ou a Alemanha. Estas nações, mercados com uma capacidade financeira muito superior à nossa, têm um interesse para a World Rugby incomparavelmente superior ao de Portugal. Há muitos mais países, a jogarem com muito mais qualidade.

Há jogadores de qualidade em Portugal disponíveis para voltar a fazer uma época inteira no Circuito? Qual é o orçamento necessário para ter essa selecção a competir?
Acredito que haveria alguns dos melhores jogadores disponíveis, mas não todos. Continuamos a ter um amadorismo que não permite que assumam o râguebi profissional como opção de fundo. Pode dedicar-se um, dois anos a um projecto de alto rendimento. Em termos de recursos financeiros, seguramente que obrigaria a um investimento de meio milhão de euros. Só para dar uma noção, gastamos com todas as selecções nacionais cerca de 800 mil euros. É mais de metade do orçamento disponível para as selecções. A não ser que haja investimento privado, é irreal.

A federação procurou esse investidor?
A questão que se coloca é sempre a do retorno. Há quem argumente que, estando no Circuito Mundial, Portugal consegue ganhar uma notoriedade comercialmente relevante, mas na vida real não é bem assim. Não temos em Portugal um patrocinador que dê 250 mil euros para patrocinar os 'Lobos' no Circuito Mundial. É desse tipo de valores que precisamos para, juntamente com o dinheiro da World Rugby e o financiamento do Estado português, conseguirmos ter uma participação no Circuito Mundial.

Sendo uma competição global, não há interesse de investidores internacionais?
Fizemos contactos com diversas multinacionais, como a Emirates, a Qatar Airways ou a DHL… Nenhuma revelou interesse. Procuram mercados com outra dimensão.

Que futuro prevê para as competições nacionais?
Uma das soluções para o desenvolvimento do râguebi português é que sejam aproveitadas oportunidades que já foram colocadas à disposição e não soubemos aproveitar. Soluções que passam por participarmos em torneios “cross border”. O problema é que, em Portugal, os mesmos clubes que têm dificuldade em pagar mais dinheiro à federação para assegurar árbitros e competições, mas que têm dinheiro para contratar dezenas de jogadores estrangeiros e pagar salários a treinadores superiores a 1500 euros por mês, são os mesmos que não pretendem integrar uma Liga ibérica semi-profissional, por considerarem que é um passo demasiado grande. A federação tentou fundamentar uma solução que passasse por franquias regionais que aglomerassem os melhores jogadores. Essa solução foi rejeitada pelos clubes. É esta falta de visão colectiva que faz com que estejamos cada vez mais isolados.

Essa competição ibérica não avançou por opção dos clubes?
Foi colocada aos clubes nacionais a possibilidade de disputarem uma competição de oito equipas, sendo que seis seriam espanholas e duas portuguesas. Na minha opinião, Portugal deveria ser representado por equipas regionais formadas pelos melhores jogadores nacionais. Os clubes ainda vivem assentes sobre o seu interesse individual e não chegaram a acordo com a federação espanhola. Reconheço que, enquanto presidente da federação, devia ter sido capaz de fomentar essa visão colectiva de interesse comum. É falha minha, mas também dos clubes. Passados dez anos de falarmos de uma Liga ibérica, continuamos a procurar as mesmas soluções e a falhar pelas mesmas razões. Quando nos é colocada uma nova solução, é rejeitada. Espero que num futuro próximo possa ser aproveitada.

Como encontrou a federação financeiramente e como é que a deixa?
O nível de endividamento era na ordem dos 700 mil euros. Em face da perda de receitas em cerca de um milhão de euros, receitas que conseguimos que voltassem a subir, mantivemos o nível e pensamos que será possível terminar o ano com uma redução marginal do valor que encontrámos. Em função de um cenário catastrófico em relação às receitas, apertámos o cinto e conseguimos não agravar o endividamento. Reformulámos a forma de apresentação de contas para que fosse perceptível para todos que tipo de receitas temos e onde gastamos o dinheiro. Se no passado se pagava a treinadores nas selecções salários de 80 mil euros por ano, hoje em dia o salário mais elevado é metade desse valor. Mas o râguebi, para evoluir e se valorizar, precisa de outra capacidade. Os clubes não podem continuar a contribuir com cerca de 1,5% do valor das receitas da federação. Isso é absolutamente inaudito. Não existe nenhuma outra modalidade colectiva em Portugal organizada que sobreviva com os clubes a pagarem entre 150 e 400 euros por ano para inscreverem as suas equipas e com os jogadores a inscreverem-se sem pagarem um cêntimo à federação. Em Espanha um clube de primeira divisão paga 15.500 euros para jogar, na segunda pagam seis mil euros.

Levou à AG propostas para que isso fosse alterado?
Fizemo-lo duas vezes. Da primeira fomos criticados por fazermos propostas muito radicais. Numa segunda, apresentámos propósitos estratégicos claros, que passavam pelo reequilíbrio financeiro da federação, pela qualificação da estrutura e, sobretudo, pelo objectivo estratégico de crescimento orgânico, não apenas através da formação, mas também pela aposta de novas áreas como o râguebi nas prisões ou o touch rugby, actividades que estão a crescer no seio da federação. Acolheram bem as nossas visões, mas as medidas de natureza financeira foram chumbadas. Tirámos daí as nossas ilações. O râguebi terá que encontrar outras soluções para não continuar a ter um défice operacional de cerca de 200 mil euros por ano.

Que balanço faz do mandato?
Foram quase três anos extremamente duros. Existiu uma contestação quase permanente. Mas do ponto de vista financeiro, quem esteja minimamente por dentro dos problemas da federação, dificilmente deixará de elogiar a forma como esta direcção empreendeu reformas importantes. Do ponto de vista desportivo, com cortes significativos, conseguimos crescer em actividade. Demos a atenção ao râguebi feminino que já era merecida. Ainda não é a desejável, mas deixámos pistas para que se possa afirmar na vertente de XV no futuro. Continuámos com uma riqueza de resultados no râguebi juvenil que seria difícil de prever com a quantidade de cortes que houve. Lançámos um software que permitirá registar como atletas federados todos os que estão envolvidos no desporto escolar, no râguebi das prisões e solidário, no touch rugby. Preparámo-nos para alargar a base, o que do ponto de vista estratégico será extremamente importante. O râguebi precisa de ganhar relevância demográfica. Fazendo um balanço, reconheço que no início cometemos erros que nos custaram caro. Havia uma expectativa de corte com o passado recente que não foi imediatamente efectivada. Fomos muito colados a polémicas. O râguebi português vive do diz-que-disse, de blogues, de mentiras que rapidamente se transformam em verdades. Reconheço que nunca tive a disposição ou o feitio para aparecer diariamente e fazer-me ouvir. Creio que deixo o râguebi mais preparado para encarar o futuro, mas não saio com uma sensação de sucesso.

Coloca a hipótese de se recandidatar?
Por uma questão de coerência, gostaria. Mas estou impedido de o fazer pelos estatutos. Chegou a altura de dar o lugar a quem possa fazer melhor e de eu tirar todas as lições destes quase três anos.

Que lições serão essas?
Várias a nível individual, que prefiro não partilhar. Em termos de râguebi, se soubesse o que sei hoje, seria mais interventivo e comunicativo. O râguebi hoje é gerido em função do interesse individual de cada clube. Enquanto as pessoas não perceberem que isso é assim, o râguebi não vai evoluir. Todos devem meter a mão na consciência. Enquanto se defender apenas os interesses circunstâncias das equipas, o râguebi não terá uma solução. Os valores do râguebi têm que passar a ser defendidos por todos. Estes últimos episódios demonstram que continua a ser mais importante defender os interesses de cada um do que os interesses da modalidade.

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