O catastrofismo quotidiano

Em França, as lojas anunciam os saldos com uma frase que parece retirada de um canto apocalíptico ou das assombrações dos fins: “Tout doit disparaître” (tradução literal: “tudo deve desaparecer”). Se traduzíssemos para francês o regime da finitude em que mergulhou o nosso tempo, diríamos que entrámos há algum tempo em época de saldos e já estamos na fase última da “liquidação total” (também em português a linguagem da publicidade está cheia de conotações metafísicas). Na verdade, estamos expostos a uma obsessão pelos fins, pelos declínios, pelo que se extinguiu ou está à beira de se extinguir. Não se trata propriamente de uma escatologia porque não há sequer escathon, Juízo Final. É um apocalipse sem redenção. Não me refiro ao grande medo do fim do mundo, dos oráculos e previsões a que a ideia de uma nova era geológica a que foi dado o nome de Antropoceno deu legitimidade científica (há um livro notável do antropólogo brasileiro Eduardo Viveiros de Castro e da sua mulher, filósofa, Deborah Danowski, intitulado Há Mundo Por Vir?, de 2014, que é um ensaio sobre o medo e o imaginário do fim e do catastrofismo ecológico). Refiro-me sobretudo a outros fins mais parciais. Primeiro, foi o fim das “grandes narrativas”, que deu lugar a que se falasse do “fim da arte”. Devemos esse discurso a Arthur Danto, um crítico e filósofo americano que morreu em 2013 (evidentemente, o fim da arte, para Danto, não significa que deixa de haver artistas e obras de arte). Quase ao mesmo tempo, apareceu o livro de Fukuyama sobre o fim da História e o fim da política entrou no repertório dos lugares-comuns. Mas, entretanto, a corrida para o regime das finitudes acelerou-se e alargou-se em muitas outras direcções. Esta exacerbação da ideia dos fins produz verdadeiros hinos zombies. Ou melhor, estamos prestes a tornarmo-nos todos zombies. A lista das nossas obsessões apocalípticas é cada vez mais vasta: há o fim do Ocidente, mas esse é já um clássico, em exibição há pelo menos um século (muito embora a sua tonalidade cultural tenha sido substituída por uma tonalidade económica). A esse, veio acrescentar-se uma outra modalidade derivada, que é o fim da Europa. Mas a temática apocalíptica torna-se muito menos metafísica e até um pouco cómica quando se fala do fim do homem branco, do fim do macho, do fim da heterossexualidade. Estas três últimas figuras condenadas à extinção não são uma grande preocupação para os metafísicos, mas são objecto de grandes elaborações literárias. Um escritor como Michel Houellebecq deve grande parte do seu sucesso ao facto de as suas ficções narrativas configurarem um mundo onde se chegou ao fim dessas figuras.

Esta nossa obsessão pelos fins é muito desinteressante e nem sequer tem aquela beleza decadente, nitidamente kitsch e decorativa, do “alegre apocalipse” vienense, quando o Império austro-húngaro estava a ruir por todos os lados enquanto se dançava a valsa no palácio do Imperador que continuava a dirigir-se “aos meus povos”. Imersos em tantos fins, talvez seja útil e uma boa ideia lermos um livro fundamental, uma compilação póstuma de materiais, de um antropólogo italiano, um génio tardiamente reconhecido chamado Ernesto De Martino. Chama-se La fine del mondo e, pelo subtítulo, anuncia-se como um “contributo para a análise dos apocalipses culturais”. O conceito de apocalipse cultural é um importante contributo de De Martino para os instrumentos da análise cultural e para história das ideias. Ele chama apocalipses culturais aos momentos em que se dá uma forte sensação de perda, uma sensação que não é só física, orgânica, mas também psíquica. Eis um conceito que o nosso tempo nos convida a revisitar. 

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