Máquina de censura ou Internet mais justa?

O Parlamento Europeu vota esta semana regras sobre direitos de autor online. O PÚBLICO falou com quem escreveu a proposta actual, com quem a critica e com os que a defendem.

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Uma imagem do YouTube, que já recorre a filtros Dado Ruvic/Reuters

Uma controversa proposta de novas regras de direitos de autor nas plataformas digitais – conhecida por propor a existência de filtros na Internet para impedir a publicação de conteúdos não autorizados – vai ser votada pelos eurodeputados do Parlamento Europeu esta quinta-feira. A votação decidirá se os eurodeputados ficam mandatados para continuar o processo legislativo com os outros órgãos da União Europeia, ou se o documento voltará à discussão dentro do Parlamento.

As novidades trazem preocupações sobre a liberdade de expressão, com os eurodeputados a receberem milhares de emails de eleitores europeus a criticar as mudanças. O PÚBLICO falou com os criadores, defensores e opositores das mudanças para perceber o que está em causa. De um lado, fala-se do fim da Internet livre. Do outro, de um esquema de desinformação por parte das grandes empresas para proteger o seu modelo de negócio.

Para que serve uma nova directiva e o que tem de controverso?

Em Setembro de 2016, a Comissão Europeia apresentou um pacote legislativo para modernizar as regras em vigor na União Europeia em matéria dos direitos de autor. As leis actuais sobre os direitos de autor na Internet estão desactualizadas: datam de 2001, altura em que o YouTube não existia, Mark Zuckerberg ainda estava a acabar o secundário, e o Google não tinha um serviço de email.

“O maior objectivo é proteger os artistas europeus e garantir que são remunerados pelas grandes plataformas que difundem o seu conteúdo online como parte do seu modelo de negócio”, explica ao PÚBLICO o eurodeputado relator da proposta actual (introduzindo emendas à versão inicial da CE), e membro do Partido Popular Europeu, Axel Voss.

Entre as maiores mudanças – e as maiores críticas –, estão o artigo 13.º, que exige que as plataformas online passem a utilizar sistemas de reconhecimento de conteúdo para impedir a publicação de elementos pirateados, e o artigo 11.º, que permitirá aos sites de notícias cobrarem pelos excertos que acompanham os links para páginas de conteúdo.

“As plataformas não conseguem conhecer todo o conteúdo com direitos de autor que existe. Por isso, com estas regras, vão censurar qualquer coisa que não tenham pago para ter o direito de usar. E isto não faz sentido”, resume ao PÚBLICO Julia Reda, eurodeputada do Partido Pirata Alemão, e uma das maiores opositoras da proposta.

Voss, porém, acredita que as mudanças apenas vão afectar entre 1% a 5% das plataformas na Internet. “Os sites vão ser afectados consoante o seu modelo de negócio. Se o modelo é lucrar à custa do trabalho dos artistas sem partilhar remuneração, é claro que vão ter problemas”, diz. “Há muita desinformação online. São notícias falsas, financiadas pelas grandes empresas que estamos a atacar e que chamam ao que estamos a fazer ‘filtros’, ‘máquinas de censura’, e outros chavões.”

As palavras repetem-se nos muitos emails que recebe. “Já recebi pelo menos 60 mil emails, mas são todos iguais. Vêm de formulários criados por grandes empresas como o Facebook, a Amazon e o Google, e basta preencher o email e o número de telefone para contestar a nossa proposta e pedir para 'salvar a Internet'”, diz Voss. “O pior é que quando telefonamos às pessoas que assinaram o email, percebe-se que muitos não leram a directiva.”

O que são os filtros?

Para Voss, “filtros” não é a palavra correcta. “Queremos programas de reconhecimento de conteúdo baseados na informação que é dada pelos detentores das obras com direitos de autor. É uma espécie de impressão digital da obra.”

Alguns sites – como o YouTube – já usam sistemas semelhantes: os vídeos carregados são automaticamente comparados com uma extensa base de dados de ficheiros enviados por proprietários de conteúdo (por exemplo, produtoras de cinema) para garantir que não há conteúdo a circular sem autorização.

A proposta de directiva inclui também várias excepções para sites que "armazenam e dão acesso a conteúdo para fins não lucrativos, como enciclopédias online, repositórios educativos, ou plataformas de programação em código aberto”. Mas para Julia Reda, cujo programa assenta na modernização da sociedade de informação, não é suficiente.

“A introdução de filtros, ou identificadores de conteúdo, é completamente desnecessária. A maioria dos autores não quer ver o seu trabalho fora da Internet, quer é receber dinheiro pelo seu uso”, diz Reda. “Assim, a Wikipedia corre mesmo perigo.”

A proposta apenas lista as enciclopédias online como um exemplo. “A verdadeira exclusão é para plataformas não comerciais e isso é uma área cinzenta”, explica a eurodeputada. “Num julgamento em tribunal, não se pode ter a certeza onde plataformas como a Wikipedia caem. Embora seja uma organização sem fins lucrativos, é comum existirem pedidos de donativos para ajudar a suportar os custos da enciclopédia.”

Reda lembra ainda que a Wikipedia “não existe no vácuo” e depende de outras plataformas como a fundação Wikimedia Commons, que não é uma enciclopédia, mas armazena muitas das fotografias que a Wikipedia usa.

Fora do Parlamento, quem está contra?

As grandes tecnológicas estão preocupadas. Com as provisões criadas na década de 1990 (conhecidas como safe harbor ou "porto seguro) como parte da lei Digital Millennium Copyright Act, as plataformas online não podiam ser responsabilizadas pela existência de conteúdo pirateado. O artigo 13.º muda isso, e o artigo 11.º (que tem sido chamado “taxa de link”) permite aos sites de media online cobrarem pelos excertos que acompanham os links em páginas de agregadores online como o Google News.

Nos últimos dias, o Google está a ser criticado por ter encorajado algumas das empresas de media que receberam financiamento do programa Digital News Initiative (DNI) a contactar membros do Parlamento Europeu sobre a directiva (o PÚBLICO recebeu financiamento do fundo DNI). “A inovação e o trabalho em parceria são a melhor forma de sustentar o ecossistema geral dos anunciantes e dos editores. Não esta proposta”, escreve Madhav Chinnappa, director de relações estratégicas do Google, em respostas ao PÚBLICO. “O objectivo do DNI é trocar opiniões e melhorar a colaboração entre o sector de notícias e o Google.”

Medidas com propostas semelhantes às do artigo 11.º já foram postas em vigor em alguns países europeus, como a Alemanha e a Espanha, mas sem sucesso.

“Muitas vezes, os jornais e empresas de media dizem que estão a ganhar menos dinheiro porque grandes empresas como o Google o Facebook publicam links de graça, mas isto não é verdade”, explica Julia Reda. “Fazem mais dinheiro porque têm acesso a grandes quantidades de dados pessoais sobre as pessoas, que lhes permitem criar anúncios direccionados. Antes destas plataformas, eram os jornais que permitiam que a publicidade chegasse a mais pessoas.”

Contra a proposta de novas regras está ainda pelo menos parte da comunidade académica, com dezenas de profissionais europeus e associações de defesa digitais a enviar cartas abertas ao Parlamento Europeu. Entre as queixas, está o artigo 3.º, que coloca limites à prospecção de textos e dados (uma técnica mais conhecida por data mining).

“Os dados não podem ser vistos como algo com direito de autor, nem analisar um texto para retirar informação pode ser visto como uma infracção”, argumenta Reda. Para já, as excepções apenas incluem trabalho científico, didáctico, e preservação da herança cultural. “É preciso permitir data mining e não só para investigação científica. Veja-se o caso do jornalismo de dados e de trabalhos de investigação, o escândalo financeiro Lux Leaks ou os Panama Papers.”

Quem está a favor?

Os artistas para quem a proposta foi criada. "Trata-se de reequilibrar o nosso mundo digital – para que os cidadãos possam continuar a partilhar conteúdo em plataformas online e os criadores possam ser pagos", lê-se numa carta aberta assinada por 84 associações e editores independentes europeus, que foi enviada aos eurodeputados.

A Associação de Músicos Artistas e Editores Independentes, em Portugal, está entre os assinantes. “O YouTube tem de remunerar os artistas, seja pelos conteúdos oficiais, seja pelos conteúdos que os seus fãs carregam. Não estamos a ir ao bolso dos fãs, atenção: é o YouTube que deve pagar os direitos desses conteúdos, da mesma forma que paga os outros. Não é desculpa serem carregados pelos fãs”, diz Nuno Saraiva, presidente da associação.

O que acontece agora?

Para Julia Reda, é fundamental adiar a aprovação do documento no Parlamento Europeu. “Independentemente daquilo em que as pessoas discordam, é óbvio que há interesse público e é preciso mais debate”, diz a eurodeputada. “Votar ‘não’ apenas quer dizer que a proposta não segue a via rápida.”

Voss tem uma perspectiva diferente: “Se isto não passar já, vai atrasar e vamos ter de pensar em novos compromissos. É inegável que os artistas europeus vão sair menos protegidos desta situação.” O eurodeputado alemão recomenda que as pessoas contra a directiva leiam o documento na íntegra. "É como a monitorização da velocidade numa auto-estrada. Queremos detectar os carros que estão a andar rápido de mais. Não impedir carros de circular."

A votação acontece esta quinta-feira, em sessão plenária do Parlamento Europeu. Caso o voto seja negativo, os artigos voltam a ser debatidos, em plenário, em Setembro.

Editado: O eurodeputado Axel Voss é o relator da proposta de directiva do Parlamento Europeu, e não da proposta original como uma versão anterior do texto dava a entender. As provisões conhecidas como "safe harbor" são uma parte do Digital Millennium Copyright Act.

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