Investigação a cartel dos seguros resultou de uma denúncia da Tranquilidade

Seguradora detectou indícios de cartelização que envolviam a própria empresa e outras três seguradoras, apresentou denúncia à Concorrência e aderiu ao Programa de Clemência.

Espírito Santo Financial Group, Seguros
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A seguradora Tranquilidade fazia parte do Grupo Espírito Santo e foi vendida pelo Novo Banco ao fundo Apollo
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A Autoridade da Concorrência, liderada por Margarida Matos Rosa, está a investigar indícios de cartel nos seguros desde meados do ano passado Rui Gaudêncio

A investigação da Autoridade da Concorrência (AdC) que decorre desde o ano passado a uma possível cartelização no sector dos seguros resultou de uma denúncia da Tranquilidade em 2017. A informação foi adiantada ao PÚBLICO por várias fontes do sector dos seguros que adiantam que foi a própria Tranquilidade a detectar indícios de cartelização dentro da empresa, indícios esses que entregou à AdC solicitando, ao mesmo tempo, a adesão ao Programa de Clemência. Este programa, uma espécie de delação premiada, poderá permitir à seguradora ficar livre de qualquer penalização mesmo que venham a ser comprovadas as práticas ilegais.

Em causa estão suspeitas que as seguradoras terão combinado preços nos seguros de acidentes de trabalho e terão mesmo combinado que não disputariam clientes importantes entre elas.

Contactada pelo PÚBLICO, a seguradora (a antiga companhia de seguros do Grupo Espírito Santo) declarou que “o processo se encontra em segredo de justiça e como tal não pode "fazer qualquer comentário sobre o mesmo”. Esclareceu ainda que pretende “vincar que a companhia segue os mais elevados padrões de transparência nos seus procedimentos e na relação com os clientes bem como de compliance." E mais não disse.

Todavia o PÚBLICO apurou junto de outras fontes internas da empresa, mas estas não oficiais, que os tais indícios de uma possível prática de cartelização envolvem as principais empresas do sector e foram descobertos já depois de a Tranquilidade ter sido vendida (em 2015) à gestora norte-americana de "private equity" Apollo. Contaram também que ao ser informado da existência “de situação menos claras”, em 2017, o Conselho de Administração Executivo, chefiado por Jan Adriaan de Poote, reportou os factos ao accionista, que destacou uma equipa de juristas para Lisboa, incluindo norte-americanos, para avançar com averiguações internas. E deste trabalho resultaram as denúncias apresentadas às autoridades nacionais, que ficaram na posse de emails trocados entre seguradoras concorrentes, bem como de outras provas documentais.

Uma outra fonte ouvida pelo PÚBLICO, que acompanhou as averiguações internas, recusa a tese de que se tratou de uma denúncia com vista a garantir à Tranquilidade a protecção das autoridades. “Se fosse uma delação premiada, como se alega, isso significava que havia uma investigação em curso na AdC e que a Tranquilidade tinha sido apanhada. Só que a AdC nada sabia e foi a Tranquilidade a tomar a iniciativa”, assegura. 

Ainda assim, numa nota constante do relatório e contas relativo a 2017 da seguradora Unidas (onde se agrupa a Tranquilidade, a Açoreana, a Logo e a T-Vida) pode ler-se que existe um processo aberto no qual a seguradora estava “a colaborar plenamente com a Autoridade da Concorrência” e que previa que não viesse a ocorrer “a aplicação de uma coima” uma vez que tal não era “antecipado pelos assessores jurídicos a acompanhar esta matéria”.

A AdC, também contactada pelo PÚBLICO com as informações recolhidas, apenas diz que “o processo no sector segurador que a AdC tem em curso encontra-se sob segredo de justiça”, pelo que está impossibilitada “de comunicar qualquer detalhe sobre o mesmo”.

A existência deste processo foi conhecida há praticamente um ano, a 8 de Julho de 2017, através de uma notícia do Expresso que dava conta de que já teriam havido buscas nas seguradoras visadas. Na mesma data a AdC acabaria por confirmar as informações do semanário através de um comunicado onde adiantava que tinha realizado “diligências de busca e apreensão em cinco instalações de quatro empresas, localizadas na Grande Lisboa, no âmbito de uma investigação por práticas anti concorrenciais, ao abrigo dos poderes sancionatórios que lhe são conferidos pela Lei da Concorrência”. A entidade liderada por Margarida Matos Rosa especificava ainda que “as buscas foram motivadas pela verificação de indícios de cartel no sector segurador, que fundamentam suspeitas de infracção à Lei da Concorrência.”

Apesar de há um ano as suspeitas de cartelização recaírem apenas sobre quatro seguradoras, as mesmas fontes contactadas pelo PÚBLICO referem que o processo já será mais abrangente e que mais empresas estarão a ser investigadas.

A Tranquilidade passou para o perímetro norte-americano em 2015, altura em que o Novo Banco a vendeu ao fundo Apollo que pagou cerca de 40 milhões de euros, com compromisso de reforço de capital de 150 milhões de euros.

Antecedentes de 2013

Apesar de o processo ser do conhecimento público desde meados do ano passado, os seus antecedentes remontam, pelo menos, a 2013, data em que o supervisor dos seguros, a Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, teve de intervir na modalidade dos seguros de acidentes de trabalho.

Na prática, este ramo segurador era consecutivamente deficitário, com as seguradoras a assumirem perdas para captarem mais clientes. Também aqui poder-se-á estar perante novas violações da concorrência, uma vez que as seguradoras cobravam pelos valores dos seguros montantes que saberiam estar abaixo do preço de custo.

Foi neste contexto que o regulador dos seguros actuou exigindo às empresas que tomassem medidas para que cada ramo segurador, neste caso o de acidentes de trabalho, fosse sustentável, ou seja, teriam de aplicar preços que o garantissem, algo que não estava a acontecer. O supervisor determinou ainda que lhe fosse apresentado um plano com as medidas adoptadas e que lhe fossem comunicados mensalmente indicadores que permitissem avaliar a situação da modalidade acidentes de trabalho. Mais tarde, em 2014, o supervisor voltou a pressionar as seguradoras para resolver a situação uma vez que considerava que o que tinha sido feito até essa data era insuficiente para equilibrar a modalidade de acidentes de trabalho no prazo de três anos.

Foi então neste contexto que as empresas terão começado a subir preços. Mas tê-lo-ão feito de forma consertada e sem que essa subida levasse à disputa de clientes. E é esta prática que está agora a ser investigada. Se vierem a ser condenadas, as seguradoras poderão incorrer em coimas que, no limite máximo, poderão atingir 10% do seu volume de negócios, tendo como referência as contas anteriores a uma eventual condenação.

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