Ed Ruscha em dois tempos

A exposição de Ed Ruscha fica na National Gallery até 7 de Outubro e vale a pena a visita.

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Em 2005, Ed Ruscha foi convidado para representar os EUA na Bienal de Veneza e fê-lo respondendo a uma série de cinco quadros seus pintados em 1992 a preto e branco intitulada Blue Collar, com outros cinco pintados a cores. A sequência dos dez quadros recebeu o nome Course of Empire e está agora em exibição na National Gallery, em Londres.

Entrando pela porta principal da Trafalgar Square, ao cimo do primeiro lance de escadas e virando à esquerda, encontramos na primeira sala a série Course of Empire, em parte uma rima contemporânea de The Course of Empire de Thomas Cole (pintada em meados dos anos 1830) que representa a ascensão e declínio de uma civilização antiga, e que curiosamente também se encontra disponível na National Gallery.

A exposição de Ruscha, pronuncia-se “Ru-shay”, é composta por dez quadros criados em décadas diferentes que se lêem aos pares numa espécie de travessia veloz no tempo, e onde se assiste à transformação da indústria em tecnologia, sem vermos propriamente um ou outro. Organizados di sotto in su — de cima para baixo em linguagem académica — os pares organizam-se com o mais antigo, a preto e branco, por cima e o mais recente, a cores, por baixo, seguindo assim a forma ocidental da leitura: da esquerda para a direita, de cima para baixo. A sala é relativamente pequena, sendo o impacto dos dez quadros imediato. Assim que entramos somos envolvidos pelos dez quadros em simultâneo, bastando girar sobre nós próprios para assistirmos à série completa.

Começando da esquerda para a direita, di sotto in su para usar o termo, o primeiro edifício, designado por “caixa” por Ed Ruscha (box em inglês, o próprio pintor refere-se aos seus edifícios, vistos apenas parcialmente, enquanto boxes) surge na parte de baixo do frame. Não chegamos nunca a ver nenhuma fábrica, mas antes instigações, algo que simbolicamente nos remete para a ideia de fábrica, daí que possivelmente também o próprio Ruscha prefira designá- las de caixas, sugestões paralelepipédicas que não adquirem qualquer função utilitária e quase desaparecem debaixo do céu, ora revolto, ora incerto.

No quadro de cima lê-se Tires e debaixo desse, da suposta fábrica de pneus, vemos a mesma caixa fortificada por um portão de ferro e o edifício fechado. O céu insinua um pôr do sol, enquanto, no primeiro, o sol dissipa-se entre as nuvens.

Continuando, encontramos Tool & Die, para mim uma expressão enigmática, mas como é hábito nos quadros de Ruscha, as palavras parecem tiradas de filmes, ou ouvidas em sítios diferentes e aglutinadas posteriormente, combinações estranhas e humorísticas. Relembro, por exemplo, uma das variações de uma das suas pinturas mais conhecidas da bomba de gasolina Standard, neste caso particular que recordo pintada em tons verde-azulado em vez dos vermelho, branco e azul habituais, Ruscha decide desenhar uma azeitona perto do canto superior direito, convidando quem vê a fazer uma associação humorística entre a azeitona (olive) e a bomba de gasolina que fornece gasóleo (oil).

A evolução de Tool & Die faz-se para uma fachada onde se identificam caracteres coloridos coreanos. O céu adquire uma tonalidade misteriosa, semelhante a casca de ovo esverdeada. Na versão de 1992 o sol brilha atrás de nuvens densas e dispersas.

Seguindo a ordem, encontramos Trade School num céu esbatido. Na versão de 2005, a designação desaparece e a escola reaparece agora isolada por uma vedação de arame farpado. As luzes estão acesas mas não nos permitem aceder ao interior.

Blue Collar Telephone, 1992, apresenta a terminação de uma cabine telefónica sobreposta num fundo com algumas nuvens. Na resposta por baixo, um espaço vazio pertencente à cabine telefónica da década anterior. Em meados dos anos 2000, os telefones tornaram-se obsoletos com a sua substituição pelo telemóvel e posteriormente smartphone. E o título da pintura indica isso mesmo Site of a Former Telephone Both, 2005.

Finalmente, Tech-Chem, escrito na fachada lateral sobre um fundo negro, é transfigurado num outro edifício sobre um fundo vermelho fogoso onde pode ler-se, agora na fachada principal, Fat Boy.

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A designação da primeira série, Blue Collar, propõe diversas leituras possíveis da exposição. Por exemplo, um ícone do que foram as comunicações até ao início do milénio dá agora lugar a um espaço em branco nos passeios. As cabines telefónicas passaram a ser alvo da fotografia-postal turística em Londres, por exemplo, ou dignas de pequenas bibliotecas em Campo de Ourique em Lisboa.

Blue Collar, colarinho azul em língua inglesa, diz respeito à classe trabalhadora, a quem realiza trabalho manual — construção, fabricação, minério, etc. Assim, estas boxes, estes edifícios onde só nos é permitido ver uns centímetros, representam, de certo modo, a mudança na forma como vemos a evolução das indústrias de uma década para a outra. Na parede que antecede e introduz a exposição, Ed Ruscha expressa a sua admiração pelo “ciclo profético”, decidindo assim representar uma aceleração dos tempos através da alteração da mesma paisagem.

A re-interpretação da série dos anos 1990 é lida como algo inevitável, que se rodeia de uma atmosfera de “é claro”; parece óbvio que um se transforme no outro com apenas 13 anos de diferença entre si, mas talvez em 1992 não fosse tão óbvio assim.

A exposição fica na National Gallery até 7 de Outubro, e acaso a cidade de Londres esteja contemplada no plano de férias, vale a pena a visita. Citando Frank O’Hara num dos seus textos sobre Robert Motherwell, poderia dizer-se que os quadros de Ed Ruscha, em especial estes cinco pares, são “um conto simbólico dos nossos tempos”.

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