Eu tenho medo

Sou a favor da eutanásia. O meu grande medo é que o nosso país não esteja social e humanamente maduro para aplicar e desenvolver uma questão tão sensível quanto é escolher morrer

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Rui Gaudêncio

Sou aquilo a que tecnicamente se poderá chamar de medricas. Também não é para menos. Nasci com uma doença rara que, desde sempre, me fez viver com fortes condicionantes motoras, num meio ostensivamente hostil para quem não se enquadra numa tal de norma, definida, aceite e defendida por essa entidade quase esotérica chamada sociedade.

Não é pêra doce, isso posso-vos garantir. Nunca seria. Mas, muito pior é, quando dentro desse meio hostil está um Estado preguiçoso que se desresponsabiliza sistematicamente das suas obrigações sociais e até constitucionais. Vivendo nesta realidade, nunca me senti mais do que um pesado fardo para o meu país, ao longo dos quase 35 anos que conto de existência. Não só pela qualidade de vida que não me proporciona (como aos demais cidadãos), mas também por me impedir a participação activa na minha comunidade e a inclusão nos mais variados domínios que a vida de qualquer pessoa, em liberdade e autonomia, vai assumindo.

Esta é, em regra, a forma como as pessoas com diversidade funcional em Portugal são tratadas. A esmagadora maioria vive em exclusão social, têm sérios problemas no acesso aos cuidados médicos de que necessitam e os apoios associativos que estão disponíveis assentam na sua pouca participação e são ainda marcadamente paternalistas. Sobre isto não há dados oficiais porque nunca houve a coragem para se fazer esse estudo.

É neste contexto que surge, para mim, a discussão da aprovação da eutanásia. Devo dizer que sou a favor da sua implementação. Disso não tenho qualquer dúvida. O meu grande medo é que o nosso país não esteja social e humanamente maduro para aplicar e desenvolver uma questão tão sensível quanto é escolher morrer.

Creio que a aplicação da morte assistida só poderá ser feita no terreno do respeito e máxima valorização da vida. Aliás, esse deve ser o princípio de toda a discussão, mais do que a consideração da dignidade e preferência de cada cidadão —argumentos, de resto, extraordinariamente válidos, mas secundários ao bem maior que constituiu viver.

Acontece que tenho dificuldade em considerar que o meu país seja um defensor da vida, quanto mais um respeitador da mesma. O Jornal de Notícias lembrou que “entre 69 a 82 por cento dos doentes que morrem no nosso país necessitam de cuidados paliativos, mas mais de 80 por cento não os têm porque as respostas são insuficientes”. E ainda: “Os maiores hospitais do país, Instituto Português de Oncologia (IPO) de Lisboa incluído, não têm unidades de internamento. Oito dos 18 distritos não têm qualquer equipa domiciliária. E mais de 70 mil doentes continuam sem acesso a esses cuidados. Faltam recursos humanos e materiais. Faltam horas nos hospitais destinadas a estes cuidados. Faltam equipas em várias zonas do país. E falta formação orientada para um sector tão específico.”


Alguns defensores da morte assistida insurgiram-se com esta notícia, sem que eu compreendesse a razão. O referido são factos, números que nos dão objectivamente a dimensão do enorme sofrimento de que muitos padecem ou padeceram. Não é demagogia quando se descreve a realidade. Naturalmente que quem é a favor da eutanásia, será também defensor de cuidados paliativos reais e ajustados às necessidades sinalizadas. Isso não estará em questão. O ponto é que o Estado português sempre foi negligente no apoio a algumas pessoas que vivem em particular fragilidade, regendo-se, aparentemente, pela desumana contenção de custos com quem é visto como incapaz e inválido, e, por isso, não justifica o investimento de que necessita para viver com qualidade.

A minha doença é neuromuscular e progressiva. Não tendo a capacidade de prever o futuro, é facto que a probabilidade de vir a estar com severas limitações motoras (e aqui fala-se desde grandes respiratórias a dificuldades de comunicação) é muito grande. Mas, actualmente, existem formas de minorar essas dificuldades com o avanço da ciência e da tecnologia. O difícil é chegarem aos que delas precisam. Todos se lembram de Stephen Hawking que comunicava com uma tecnologia ao alcance de muito poucos. Recordo ainda o activista francês, este felizmente ainda vivo, que percorre toda a França com a sua cadeira de rodas eléctrica equipada com respiração assistida. Estes são exemplos do quanto uma situação de aparente fragilidade pode, com apoio certo e ajustado, promover uma vida rica e com impacto na construção de sociedade justa e inclusiva.

Quando a altura chegar, se chegar, eu quero poder escolher morrer. Não quero ser atirado para a minha própria execução. Morte medicamente assistida sim, mas de olho bem aberto no Estado. Já nos mostrou não ser pessoa de bem. 

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