Uma egiptóloga portuguesa a ensinar em Harvard? Sim, é a Inês

Quando lhe perguntavam o que queria ser quando crescesse, Inês Torres dava uma resposta incomum: egiptóloga. Como “workaholic” que diz ser, trabalhou até conseguir cumprir o sonho e, aos 27 anos, vai começar a leccionar na Universidade de Harvard

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Inês Torres vai começar a dar aulas de Egípcio Clássico na Universidade de Harvard Manuel Roberto

Não foi preciso escavar muito para descobrir a vocação: aos nove anos, Inês Torres já sabia que queria ser egiptóloga. "Viajou" até Egipto pela primeira vez quando o pai lhe ofereceu o livro Os Egípcios Espantosos e "foi mesmo amor à primeira vista", conta ao P3. "[Mas] ninguém acredita muito em ti quando aos nove anos dizes que queres ser egiptóloga, não é?" É, mas agora, com 27, vai começar a dar aulas de Egípcio Clássico na Universidade de Harvard, depois de ter recebido um certificado de distinção enquanto professora assistente.

Antes de chegar à universidade norte-americana, a barcelense trocou o Porto por Lisboa, para se licenciar em Arqueologia, e esteve dois anos em Oxford, a concluir o mestrado em Egiptologia. Foi nesta altura que o sonho se tornou realidade e que os avós começaram a levar a sério as palavras da menina de nove anos. "Os meus avós sempre tiveram a ideia de que eu deveria seguir Direito, para seguir as pisadas dos meus pais, e só depois de ter ido para Oxford é que começaram a confiar mais na minha escolha", conta. "Agora que estou a ser paga para estudar e a dar aulas, acho que já não têm dúvidas", sorri.

Mas se dissessem à mesma menina que iria ser professora em Harvard, provavelmente era ela quem não acreditava. "Conjugar o trabalho de campo com o ensino sempre foi o meu objectivo, mas nunca imaginei que alguma vez fosse para Harvard", confessa Inês. Começou a dar aulas graças ao programa de doutoramento, que prevê que no terceiro ano os alunos trabalhem como professores assistentes. No final desse ano, foi avaliada pelos alunos com uma pontuação superior a 4.5 (numa escala de um a cinco), o que lhe valeu uma distinção. À distinção, aliou-se a confiança que o orientador de tese depositou nela e, a partir do próximo ano lectivo, vai leccionar a fase clássica da língua egípcia — Egípcio Clássico —, a solo.

Trabalhar sozinha não é problema para alguém que mudou de cidade, de país e, mais tarde, de continente. Sempre sozinha. Ir para Inglaterra, apesar de ser "um sonho a concretizar", não foi fácil, principalmente devido ao choque cultural e ao facto de ter de "fazer uma vida 100% noutra língua". Nos Estados Unidos adaptou-se melhor, até porque considera Boston muito parecida com Europa e está inserida num grupo de amigos muito internacional. Ainda assim, admite, "apesar de adorar os Estados Unidos", há coisas que na Europa se assumem como "básicas", mas que lá são "mais caras, mais difíceis e exigem mais planeamento", como é o caso do acesso ao sistema de saúde.

As viagens de Inês, contudo, não ficam por aqui: no segundo ano de doutoramento, as aulas dividiram-se entre a Universidade Livre de Berlim e o trabalho de campo no Egipto, proposto pelo Instituto Flamenco-Holandês do Cairo. Desde o Cairo até Alexandria, passando também por Luxor e Assuão, viajou durante dois meses pelo Egipto para conhecer escavações arqueológicas e institutos egiptológicos.

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Inês vai estudar um túmulo para compreender o Cemitério Ocidental no Planalto de Gizé Mohamed Abd El Ghany/Reuters Reuters

“Há três mil anos chorávamos pelas mesmas coisas”

Mas o que é tão fascinante na cultura egípcia para fazer a egiptóloga saltar de cidade em cidade? Inês explica: "No início, o que mais me fascinou foi o facto de ser uma civilização tão parecida com a nossa." Relembra a Carta aos Mortos — que leu quando estudava em Oxford —, um texto deixado por um homem no túmulo da esposa, que dizia "algo do género": "Por favor, pára de me chatear, eu prometo que não te traí com a empregada. Deixa-me dormir à noite." A carta é o exemplo de que, "há três mil anos chorávamos pelas mesmas coisas, tínhamos ciúmes, amávamos", afirma. "Isto é algo que quase me acalma."

E é precisamente um túmulo, chamado Mastaba, o ponto de partida da tese de doutoramento de Inês. A ideia é usar este túmulo como caso de estudo para compreender o Cemitério Ocidental no Planalto de Gizé e, posteriormente a cultura funerária e religiosa do Império Antigo. A Mastaba — uma estrutura rectangular, com o tecto liso e as paredes inclinadas — em que se vai focar já foi escavada e publicada "muito sumariamente, porque depois nunca mais foi estudada". Cabe agora a Inês voltar ao túmulo — no Cemitério Ocidental, perto da Grande Pirâmide — e limpá-lo, desenhá-lo, fotografá-lo, traduzir as inscrições e estudá-lo novamente.

Metade da fachada desta Mastaba está no Museu de Belas Artes de Boston e é aqui que Inês vai trabalhar durante o Verão. Para além de ajudar nas visitas, vai também ajudar na reorganização de uma das galerias do museu e, simultaneamente, trabalhar no seu próprio projecto.

Workaholic é como se define. "Gosto muito de trabalhar, acho que a parte mais importante de mim é esse amor que tenho por tudo o que faço", afirma. E, por gostar tanto de trabalhar, não pode voltar a Portugal num futuro próximo, porque o país não lhe oferece oportunidades profissionais. O que falta, então, fazer? “Muitas coisas” — entre elas dirigir uma escavação. Para já, o doutoramento é o futuro e, depois, um pós-doutoramento noutra universidade. Aprender sobre o Egipto nunca é de mais para Inês que, aos 27 anos, ainda vê o Egipto com os olhos a sorrir. 

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