O movimento starting up e o capitalismo das pequenas plataformas

Estamos em condições de organizar comunidades virtuais e mobilizar o capital social em direção a formas superiores de inteligência, ao mesmo tempo mais coletiva e distribuída.

Nas suas obras Cibercultura (1999) e Inteligência Coletiva (2007), Pierre Levy explica-nos os conceitos de ciberespaço, cibercultura e inteligência coletiva, de acordo com o princípio geral de que “ninguém sabe tudo, todos sabemos alguma coisa”. Ora, justamente, a infraestrutura do ciberespaço e o universo cognitivo da cibercultura conduzem-nos a “um tipo de inteligência compartilhado que surge da colaboração de muitos indivíduos na sua diversidade, de uma inteligência distribuída por toda a parte pois todo o saber está na humanidade” (Levy, 2007, 212). É a teoria dos três capitais. A partir do capital tecnológico e da infraestrutura das redes, e usando o capital cultural que acumulámos sob a forma de informação e conhecimento, estamos em condições de organizar comunidades virtuais e mobilizar o capital social em direção a formas superiores de inteligência, ao mesmo tempo mais coletiva e distribuída.

Ora, justamente, a criação de inúmeras start up, que aqui designamos como o movimento starting up, permite-nos acalentar a esperança do futuro se, para tanto, soubermos cultivar o espírito positivo do bom senso e do bom gosto e não embarcarmos em euforias desnecessárias. Neste particular, estou convencido de que sem o estímulo do estado-plataforma (PÚBLICO, 16.04.2018) não haverá movimento starting up em Portugal, vigoroso e sustentável, por mais paradoxal que isto possa parecer quando falamos de independência e autonomia. Para aprofundar um pouco mais este assunto, façamos, então, serenamente, uma viagem ao capitalismo popular das pequenas plataformas.

Sociedade complexa e pensamento transdisciplinar

Vivemos numa sociedade complexa e contingente que exige um pensamento muito mais crítico e transdisciplinar. A sociedade compartimentada e interdisciplinar do capitalismo industrial está já limitada no seu potencial porque é uma sociedade aditiva e linear, onde prevalecem a ordem, a segurança e o progresso mal distribuído. Por sua vez, a sociedade compartilhada e transdisciplinar do capitalismo pós-industrial aspira a mais liberdade e criatividade para crescer, mas é, também, mais incerta, insegura e apresenta um risco sistémico elevado. De um ponto de vista intergeracional, a sociedade do capitalismo industrial é a sociedade da geração dos baby-boomers e da geração X, enquanto a sociedade pós-industrial é a sociedade das gerações Y e Z, as gerações dos screenagers e da internet móvel em todas as suas variantes técnicas. De acordo com esta evolução, podemos dizer que assistimos a uma verdadeira reprogramação das mentes à medida que nos aproximamos do ciberespaço e da cibercultura.

Os cibernautas das gerações Y e Z (nascidos de 1980 para cá) são muito mais criativos e transfronteiriços, no sentido disciplinar, porque em boa medida renunciaram ao sentimento de propriedade e posse para adotarem as noções ou categorias de acesso e serviço partilhado e colaborativo. Eles convivem e trabalham muito mais em comunidades virtuais e ambientes simulados do que em comunidades reais e ambientes físicos. Eles pertencem ao universo dos servidores e utilizadores mais do que ao universo dos vendedores e compradores. Eles são pessoas e indivíduos que trabalham, cada vez mais, em regime de trabalho partilhado e financiamento participativo, isto é, eles são seres constantemente conectados, em relacionamento permanente e usando a sua criatividade para agregar valor compartilhado aos serviços imateriais e intangíveis que prestam no universo oceânico do ciberespaço através de várias plataformas.

A cultura digital e a inteligência coletiva não só reclamam um pensamento mais crítico como solicitam um outro pensamento transdisciplinar, uma espécie de “fusão a frio do pensamento disciplinar”, conduzindo-nos em direção a novos códigos de comunicação e linguagem. Em especial, a interação entre comunidades online e comunidades offline é uma fonte inesgotável de ensinamentos, por isso, falamos, também, de comunidades cognitivas que aperfeiçoam constantemente os seus modelos de inteligência coletiva. Finalmente, é bom insistir no lado preventivo e terapêutico destas comunidades pois não podemos esquecer o lado tóxico das redes digitais e o risco de alienação que elas comportam. Nesta fase de transição, não é demais alertar para o risco moral e o free raider (o passageiro clandestino) que os novos modelos de negócio podem implicar e estar atentos, por isso, aos efeitos não-intencionais e danos colaterais que lhes são inerentes.

Aqui chegados, é preciso que o movimento starting up não confunda dois planos analíticos. Em primeiro lugar, há inegáveis progressos colaborativos e inteligência coletiva variada em ambientes empresariais modificados e simulados, em espaços comuns de criação artística e inovação social e em territórios-rede do mundo rural, em resultado da organização de comunidades online e redes colaborativas. Todos eles desenvolvem formas de inteligência coletiva e plataformas/aplicações/funcionalidades muito diversas que importa aprofundar e monitorizar. Em segundo lugar, é forçoso constatar que estes progressos ainda não se traduzem em melhorias substantivas e estruturais de natureza colaborativa na sociedade política em geral. Ao contrário, assistimos à eclosão de algumas manifestações hostis no espaço público, seja no universo corporativo mais convencional ou no universo mais agressivo das redes sociais que podem arrastar consigo a “tribalização de comportamentos na rede” que, no limite, podem conduzir a autênticas guerras entre cibernautas e entre estes e as corporações e sindicatos mais conservadores, já para não falar da “guerra civil” com os guerreiros das identidades locais e territoriais ou, mesmo, de atos ligados ao cibercrime.

Este défice de cultura colaborativa e solidária enraizada na sociedade política em geral precisa de ser rapidamente preenchido, pois é determinante para fundar um sólido movimento starting up se quisermos consolidar uma “ética do bem comum” de suporte a um capitalismo popular de pequenas plataformas que esteja para lá do mero negócio digital.

Capitalismo cognitivo e regresso dos comuns

O capitalismo pós-industrial compreendeu muito cedo esta mutação radical e transmutou-se, ele próprio, em capitalismo cultural e criativo, o denominado capitalismo cognitivo (Boutang, 2008, Le capitalisme cognitif). Neste capitalismo cognitivo, os ambientes simulados e virtuais onde, pretensamente, existe mais poder lateral do que vertical, são terrenos onde a produtividade do trabalho já não se mede por hierarquias, cadeias de comando e regulamentos disciplinares, mas, antes, por inteligência emocional, sentimentos partilhados e contribuições criativas para o trabalho coletivo. De certa forma, é um regresso a uma ética do trabalho comunitário e a uma inteligência coletiva colaborativa que poderíamos designar como “produção social interpares”. Neste sentido, imagine-se, por exemplo, o potencial colaborativo e a inteligência coletiva que “habitam” as redes empresariais, as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de inovação social, as redes amigas do ambiente ou os territórios-rede da 2ª ruralidade.

É neste contexto, também, que se fala de um “regresso dos comuns” (Coriat, 2015, Le retour des commons), não apenas dos comuns dos recursos materiais (Ostrom, 1990, Governing the Commons) mas, sobretudo, dos comuns do conhecimento, da cultura e da solidariedade social à boleia das tecnologias e plataformas digitais (Hess and Ostrom, 2007, Understanding knowledge as a commons). Se quisermos, numa aceção ampla, falamos da emergência de um “quarto setor”, o setor onde os bens comuns da sociedade da informação e do conhecimento desempenham um papel crucial na sua estruturação, em particular, na interação entre a economia social e solidária e a economia do conhecimento. Neste regresso aos bens comuns, recordemos algumas das propriedades emergentes, tal como podem ser percebidas no quadro do capitalismo cognitivo e da economia colaborativa:

  • O regresso aos valores de uso e à utilidade coletiva,
  • A prioridade ao acesso e ao serviço em vez da propriedade e da posse,
  • A assunção dos custos de transação face aos grandes intermediários predadores,
  • A apologia da proximidade e dos circuitos curtos,
  • A liberdade da auto-organização e da auto-regulação,
  • Os consumos responsáveis e partilhados, sobretudo de recursos subutilizados,
  • O combate ao desperdício e à pegada ecológica,
  • A apologia dos bens que também socializam as relações,
  • A eficácia das instituições e das regras por medida e caso a caso,
  • A plasticidade e abertura dos novos modelos de negócio colaborativo,
  • Os rendimentos crescentes de escala e os efeitos rede,
  • O financiamento participativo e a economia das multidões.

Em matéria de bens comuns e de economia do bem comum (Tirole, 2018, A economia do bem comum) há, ainda, um longo caminho a percorrer para o movimento starting up, mas, não obstante, muito promissor. Basta dizer que há, ainda, muitos “ângulos mortos” entre a economia dos bens públicos, a economia dos bens privados e a economia dos bens comuns. Esta questão dos “ângulos mortos” será, de resto, um dos temas mais fortes no debate público dos próximos anos, sobretudo no que diz respeito à natureza da coabitação e política regulatória entre bens públicos (estado), bens privados (mercado) e bens comuns (comunidade).

O capitalismo popular das pequenas plataformas e o estado-plataforma

Ao contrário das grandes transições civilizacionais anteriores, a próxima, que já aí está, é feita dos átomos para os bits, isto é, estamos a desmaterializar a próxima grande mutação civilizacional e a eliminar em boa medida as referências espaciotemporais anteriores. É assim que os novos modelos de negócio e o movimento starting up exprimem, cada vez mais, esta mutação fundamental, onde as plataformas tecnológicas desempenham o papel principal pois são a placa giratória de todos os interesses em presença. Na nova sociedade da informação, da inteligência, da internet, da imaginação, da inovação, dos bens intangíveis e imateriais, assistiremos a uma troca permanente entre a velha economia dos produtos industriais e materiais e a “nova (i)conomia” dos serviços imateriais, numa troca constante entre produto e serviço e entre propriedade e acesso e na qual a (i)conomia acrescentará cada mais valor à economia convencional que se reduzirá do mesmo passo. Face a este novo ecossistema da era digital, é toda a estrutura empresarial que terá de se adaptar pois os produtos viram serviços, os ciclos de vida ficam mais curtos, a miniaturização faz o seu caminho, os stocks são reduzidos, o espaço disponível é também reduzido, o leasing, o outsourcing e a terceirização de algumas funções serão práticas correntes.

Uma das imagens de marca desta longa transição paradigmática do capitalismo informacional é aquilo que pode ser designado como a “economia das aplicações (apps)”, num universo digital marcado, ao mesmo tempo, pela economia das multidões, a miniaturização tecnológica e a emergência de novas formas de inteligência coletiva. O princípio geral da “economia das apps” é simples de enunciar: na sociedade da informação e do conhecimento, a internet, as plataformas tecnológicas e as redes sociais colaborativas criam as condições favoráveis à formação de comunidades online de utilizadores e fornecedores de bens e serviços. Estas comunidades virtuais online comunicam entre si por meio da internet móvel e interagem através de programas ou aplicações informáticas (apps) com mais ou menos funcionalidades e interatividade.

Sabendo nós que estas comunidades virtuais de utilizadores e prestadores podem cobrir um leque muito variado de atividades económicas e sociais e que uma empresa tecnológica pode criar a aplicação para essa comunidade em modo de autogestão e auto-regulação, fica a curiosidade em saber até onde pode ir o movimento starting up, não apenas na modernização do capitalismo convencional, como, também, na modernização das funções do estado-administração, na mutualização de serviços comuns para as PME e, ainda, numa nova geração de empresas sociais e comunitárias inspiradas no mesmo espírito colaborativo e solidário. Quer dizer, há um potencial imenso para o reforço do movimento starting up e para o crescimento de um capitalismo popular de pequenas plataformas ao serviço das coletividades municipais, das instituições de solidariedade social, do movimento cooperativo e mutualista, do movimento associativo empresarial, do movimento colaborativo propriamente dito e de inúmeras funções públicas do estado-administração que em vez de serem serviços públicos passam a ser serviços ao público.

Porém, dada a extrema vulnerabilidade e volatilidade do movimento na sua fase inicial de lançamento, a criação de start up tecnológicas precisa de um porto seguro nesta fase de arranque. Essa rampa de lançamento poderia ser o estado-plataforma, não apenas por via das suas próprias start up internas à função pública, mas, também, de um programa de transformação digital alargado e abrangendo não apenas o serviço público direto, mas, também, a intermediação institucional e associativa em sentido largo. Esta colaboração entre o serviço público e os serviços ao público poderia proporcionar múltiplas formas de inteligência coletiva de baixo custo e um campo imenso para a criação do que poderíamos designar como um “capitalismo popular de pequenas plataformas” que, de resto, nós já experimentamos em várias áreas de atividade, do aluguer de táxis ao alojamento turístico, dos mercados de ocasião online ao financiamento participativo, para referir apenas alguns.

No final, porém, o que fica por saber é se estas comunidades virtuais de “custo marginal zero” (Rifkin, 2016, Sociedade do custo marginal zero) têm tradução concreta, prática e efetiva em comunidades reais e se, para tanto, entram em rota de colisão com os interesses económicos já instalados, quando se sabe que esse espaço económico já está ocupado e utilizado pelo mundo corporativo do capitalismo mais convencional que, diga-se desde já, não parece morrer de amores pela concorrência do capitalismo das redes colaborativas. O exemplo da UBER, na área do transporte de passageiros, é apenas um exemplo desta nova fase do capitalismo, em que o velho modelo da (e)conomia corporativa colide com o modelo novo da (i)conomia colaborativa.

Em jeito de síntese, deixamos aqui os traços principais da mudança da economia corporativa para a economia colaborativa das plataformas:

  • Trocar uma intermediação de custo alto por uma intermediação de custo mais baixo;
  • Trocar a aquisição de um bem definitivo pela prestação de um serviço temporário;
  • Trocar a ineficiência de um recurso subutilizado por um uso mais criterioso;
  • Trocar uma despesa por uma poupança e um aumento do poder aquisitivo;
  • Trocar uma provisão corporativa por uma provisão local de proximidade;
  • Trocar uma regulação corporativa por uma auto-regulação voluntária de proximidade;
  • Trocar uma reputação formal por uma reputação mais democrática e transparente;
  • Trocar poder autoritário e vertical por poder colaborativo e lateral;
  • Trocar a relação de forças do mercado pela força da relação da economia das redes.   

Notas Finais

Em jeito de síntese final, e a propósito da extrema necessidade de um pensamento crítico e transdisciplinar, resumo aqui o pensamento do filósofo social Daniel Innerarity (2011, O futuro e os seus inimigos) acerca das sociedades complexas, contingentes e cognitivas onde mergulha e opera a nova inteligência coletiva da era digital:

  • A crescente virtualização da sociedade torna o tempo quase irreal,
  • Por causa da velocidade é necessário prever o presente,
  • A cultura da simulação debilita a realidade,
  • A sociedade é um assunto interpretativo, precisa de um esforço cognitivo,
  • A sociedade é um campo desestruturado mais próximo do caos que da ordem,
  • É preciso suspeitar para conhecer,
  • Mais do que a evidência e objetividade trata-se da plurissignificação da realidade,
  • O que parece não é, a realidade é sempre representação,
  • O mundo atual fornece tantas possibilidades aos otimistas como aos pessimistas.
  • A economia das redes e os bens comuns colaborativos serão a esperança do futuro.

No plano da hermenêutica e do pensamento crítico das ciências humanas e sociais, a matéria da inteligência coletiva das redes promete-nos uma viagem deveras interessante. É, todavia, e ao mesmo tempo, uma viagem exaltante e inquietante. De um lado, sentimos que uma “economia sem peso” é uma contribuição extraordinária para resgatar o nosso planeta e que uma sociedade mais colaborativa e partilhada é uma aquisição valiosa para a humanidade inteira. Por outro lado, não temos garantias suficientes de que esta transição em direção ao universo cosmopolita gere empatia e confiança bastantes para providenciar o capital social que é necessário para realizar a mudança. Termino, por isso, com quatro notas finais muito breves.

Em primeiro lugar, é preciso reforçar o movimento starting up com uma sólida cultura científica e uma ética do bem comum para não cair na tentação do “Portugal fashion e do happening turístico”.

Em segundo lugar, estou convencido de que o estado-plataforma e as instituições públicas e associativas serão o ecossistema preferencial e o principal parceiro do movimento starting up na sua fase inicial de lançamento e consolidação.

Em terceiro lugar, para crescer a start up necessita desesperadamente de chegar às “multidões” para obter rendimentos crescentes de escala e melhorar a qualidade do serviço prestado. Para isso, precisará urgentemente de capital de risco.

Por último, e talvez mais decisivo, na sociedade cosmopolita da era digital, a complementaridade fundamental entre bens públicos, bens privados e bens comuns será a chave do futuro. E este será um combate político de primordial importância nos próximos anos.

E, assim, finalizamos a nossa pequena viagem ao movimento starting up e ao capitalismo popular das pequenas plataformas.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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