Do opressor ao oprimido, das cinzas às cinzas

A companhia Escola da Noite leva ao palco um espectáculo encenado por Rogério de Carvalho a partir de quatro textos de Harold Pinter.

M Preto, Luz, Fotografia, Trevas
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Duas mulheres trocam palavras enquanto sorvem uma sopa. “Há sempre algum barulho, há sempre alguma vida”, sentencia uma delas. Nessa e nas cenas que lhe seguem, há violência nos diálogos, mesmo que por vezes esta seja subtil. A solidão, a opressão, a arbitrariedade, a burocracia da autoridade acompanham o decorrer de Cinzas..., a peça que Rogério de Carvalho encenou para a Escola da Noite, a partir de quatro textos de Harold Pinter (1930-2008), e que fica em cena no Teatro da Cerca de São Bernardo, em Coimbra, até dia 10 de Junho.

O espectáculo é o resultado da junção de trabalhos de vários períodos da vida do dramaturgo britânico que em 2005 ganhou o Nobel da Literatura, prémio ao qual sobreviveria apenas três anos. The Black and White, de 1959, Língua da Montanha, de 1988, A Nova Ordem Mundial, de 1991, e Cinza às Cinzas, de 1996, serviram de base para criar a nova peça da companhia.

Em Portugal, a obra de Pinter foi levada ao palco por diversas vezes, logo a partir da década de 60, mas foram os Artistas Unidos que mais se debruçaram sobre ela. E se para a Escola da Noite esta é uma primeira vez, para Rogério de Carvalho é já a quarta: “Pinter faz uma abordagem de situações extremas, da relação do homem de hoje com o poder político. É uma espécie de limite da situação de um homem perante outros homens”, afirma o encenador para explicar a escolha das quatro peças.

Esse confronto entre opressor e oprimido foi abundantemente explorado nos textos do autor, mas encontrou igualmente reflexo na sua participação política. Pinter marcou posição contra a invasão do Iraque de 2003, liderada pelos Estados Unidos, denunciando também a tortura de prisioneiros em Guantánamo e Abu Ghraib. Se transportarmos essa postura para hoje, entende Rogério de Carvalho, exemplos similares não são escassos, da Síria à Birmânia.

Todavia, e apesar de tais alusões subirem ao palco, nada é dito explicitamente ao espectador. Num dos textos, Pinter aborda os campos de concentração, mas não “de uma forma directa”: uma personagem fala da despedida do amante, na plataforma da estação de caminho de ferro. “Essas referências são uma forma de ele fazer um tratamento com personagens do nosso tempo”, aponta o encenador. Em situações como essas, acrescenta, nota-se a tensão entre “o macrocosmos e o microcosmos”: “Os dramas individuais existem nesta peça e com muita força”. Háá “fragmentos da vida real”, mas também “da história com H grande”.

Na cena inicial, aquela em que as duas mulheres dialogam, as actrizes são acompanhadas em palco apenas pelas cadeiras em que se sentam e pela mesa colocada entre elas. O resto é luz e som. Há um certo despojamento físico. “Convém que a palavra se desenvolva num espaço de não ilustração do próprio texto e crie um imaginário riquíssimo”, explica Rogério de Carvalho, para a quem a nudez do palco serve esse propósito.

Cinzas... teve a sua estreia a 17 de Maio, na mesma semana em que a companhia ficou a saber que afinal vai ser contemplada com financiamento da Direcção-Geral das Artes (DGArtes). Em Março, os resultados provisórios do Programa de Apoio Sustentado para a área do teatro apontavam para a exclusão da Escola da Noite, mas na semana passada a companhia foi informada de que vai receber 220 mil euros em 2018 e 240 mil euros por ano em 2019, 2020 e 2021, quase o dobro do valor que recebia anteriormente. Entre 2013 e 2017, a Escola da Noite recebeu da DGArtes 123 mil euros por ano.

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