Nobel para o dramaturgo político Harold Pinter

O mais importante dramaturgo vivo britânico tem mais de 40 anos de carreira e a sua influência atravessa
o Reino Unido, o grande "exportador" de teatro. Pinter é também um autor político: chamou "idiota iludido" a Tony Blair e "assassino em massa" a George W. Bush. Por Joana Gorjão Henriques

Três dias depois de fazer 75 anos, o dramaturgo britânico Harold Pinter, autor de cerca de 30 peças, recebeu inesperadamente o Prémio Nobel da Literatura. Pinter é o mais importante dramaturgo britânico vivo e marcou tanto o teatro do Reino Unido que o seu apelido se tornou adjectivo - "pinteresco" (algo ambíguo e tenso).Mas o prémio foi inesperado, porque não era um dos nomes apontados como prováveis - como o turco Orhan Pamuk ou o poeta sírio Adónis -, e porque um britânico, V.S. Naipul, foi escolhido há quatro anos.
A academia sueca, que disse que Pinter era "visto como o mais importante representante da dramaturgia britânica da segunda metade do século XX", justificou: "Devolveu o teatro aos seus elementos essenciais - um espaço fechado e um diálogo imprevisível, em que as pessoas estão à mercê umas das outras e de falsas desagregações."
Em Inglaterra, a escolha também foi recebida com surpresa. Ao contrário da Irlanda, onde foi preparado um programa de comemorações do seu aniversário com estrelas como Jeremy Irons e Michael Gambon, ali a data passou quase desapercebida.
Ontem, sublinhava-se a vitalidade de um homem que tem um cancro no esófago, continua a intervir e a escrever, e vai mesmo interpretar Krapp"s Last Tape, de Samuel Beckett, na comemoração dos 50 anos do Royal Court Theatre de Londres em 2006. Ian Rickson, director do Court, disse ontem ao PÚBLICO através de uma porta-voz que "a influência de Pinter no teatro mundial é extraordinária e a imersão da sua arte no compromisso com a justiça é imensa".
Pinter tem sido encenado por várias companhias portuguesas, mas foram os Artistas Unidos quem mais o representou.

Críticas a Blair, Bush e ThatcherTambém poeta, actor e encenador, Pinter é conhecido pelas suas intervenções e críticas violentas à política externa britânica e norte-americana, algo que se tem radicalizado nos últimos anos. Em Abril, o autor do livro de poesia Guerra (Quasi), onde expressa a sua oposição à guerra do Iraque, insurgiu-se contra o primeiro-ministro britânico, Tony Blair, chamando-lhe "idiota iludido", e considerou o Presidente norte-americano, George W. Bush, um "assassino em massa", comparando o seu regime ao dos nazis na Alemanha. A afirmação foi feita ao mesmo tempo que o anúncio de que ia deixar de escrever teatro e transferir a sua energia para a política.
É por isso que alguns dizem que a atribuição do Nobel a uma figura tão politicamente aberta como Pinter não vai parar a controvérsia à volta deste valioso prémio (1,3 milhões de euros) - um dos membros da academia, Knut Ahnlund, acabou de anunciar a sua saída em protesto contra a atribuição do Nobel à austríaca feminista Elfriede Jelinek no ano passado.
Pinter entrou no teatro a representar e escreveu as primeiras peças em 1957 e 1958. A estreia de The Birthday Party (1957) foi arrasada pela crítica e um insucesso de público. Só dois anos depois, com O Encarregado (1959), onde três homens lutam pelo domínio do espaço, é que veio o sucesso e o reconhecimento da crítica.
Nos anos 80, o também crítico de Margaret Thatcher assume uma postura interventiva mais forte e, em 1991, escreve mesmo uma sátira de dez minutos contra a Guerra do Golfo, Nova Ordem Mundial.
Michael Billington ironiza num texto no Guardian com a dicotomia que alguns fazem entre as "peças misteriosas" do início e as certezas das últimas peças políticas. "As revisões de peças como The Birthday Party e Hothouse [Câmara Ardente, 1958] mostraram que Pinter sempre exercitou a opressão política."
Paulo Eduardo Carvalho, tradutor e investigador do Centro de Estudos de Teatro, é dos que não fazem essa divisão: Pinter nunca deixou de ser um autor político. Aliás, o investigador diz mesmo que "foram algumas das suas peças mais explicitamente políticas que permitiram rever as mais antigas e notar que as suas preocupações políticas estavam lá desde o início".
Ironia dos mecanismos de mercado e críticos, The Birthday Party é hoje considerada um clássico. Nela está já o estilo inconfundível do criador de personagens fechadas num espaço, que vão progressivamente instalando uma violência fria, e de uma escrita incisiva, com diálogos curtos e eficazes. Há sempre uma pulsão sexual latente nas personagens pinterescas, que podem vir da burguesia, como em Traições (1978), ou da rua, como em O Encarregado (1959). São figuras ambíguas (vítimas e carrascos confundem-se), a lutar pelo poder, a esconder sempre qualquer coisa. E incapazes de comunicar, mesmo quando falam muito. "A comunicação é demasiado alarmante", disse o autor. "Entrar na vida de outra pessoa é demasiado assustador. Revelar aos outros a pobreza que temos dentro é uma possibilidade mais do que temível."
Marca do autor é a fusão entre duas correntes inglesas da época em que começou a escrever, o realismo próximo de Brecht e o teatro do absurdo de Beckett e Ionesco, diz João Barrento, autor de uma tese sobre Pinter. Barrento considera que ele "nunca teve a pretensão de Beckett, de espelhar a condição humana". "Não é uma dramaturgia da condição humana, é do quotidiano." O próprio disse: "Nunca comecei uma peça a partir de uma qualquer ideia abstracta ou teoria, e nunca considerei as minhas próprias personagens como mensageiras da morte, da condenação, do céu ou da Via Láctea (...)".
Pinter não foi imitado ou, pelo menos, se foi, foi-o timidamente. Porque, diz Paulo Eduardo, "criou um estilo que não se presta a imitações", embora o seu "apuro formal" tenha seduzido alguns dramaturgos. O investigador reconhece influências na geração de dramaturgos de Sarah Kane que se manifestam na "centralidade da linguagem", na "manipulação do poder" e na violência, que em Pinter "é mais elíptica, mas que está latente desde as primeiras peças".
Descrito pelos amigos como generoso, leal, carismático e irónico, Pinter desabafou: "Tenho sido descrito como enigmático, taciturno, sucinto, irritadiço, explosivo e ameaçador. A minha vida de escritor tem sido enformada por um conjunto de características bastante diferentes que não têm nada a ver com essas descrições". A palavra aos amigos, portanto.

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