O erro estratégico da venda da EDP ao Estado chinês

A necessidade de ter um controlo em sectores estratégicos e de segurança nacional, tal como foi argumentado pelo Estado português junto da Comissão e do Tribunal de Justiça da União Europeia, mantém toda a sua razão de ser.

1. Qual a razão pela qual uma empresa maioritariamente detida pelo Estado chinês é a entidade mais adequada para prestar “um conjunto de obrigações de serviço público” em Portugal? (Ver EDP Serviço Universal). E que razão nos deve levar a acreditar que uma empresa nessas circunstâncias irá respeitar os interesses nacionais portugueses em matéria de segurança energética se estes contrariarem os interesses dos seus maiores accionistas (o Estado chinês)? Essas são as duas questões mais importantes — e que ainda não foram esclarecidas de forma convincente pelo Estado português, enquanto garante último do interesse público e de segurança nacional —, desde que a China Three Gorges anunciou a intenção de comprar a totalidade do capital da EDP numa Oferta Pública de Aquisição (OPA) a 11/05/2018. (Ver “Chineses querem toda a EDP mas prometem ‘preservar identidade portuguesa’” in Público, 11/05/2018). Claro que isto não significa que não seja relevante uma análise da intenção de aquisição da China Three Gorges numa lógica económica e empresarial, ou das regras da concorrência nacionais e europeias, como tem sido feito. Mas as suas implicações transcendem largamente essas facetas, como vou mostrar.

2. No contexto do processo de privatizações foram criadas “golden shares” (acções privilegiadas) na EDP e noutras empresas vistas como estratégicas (GALP e PT). Posteriormente, a Comissão Europeia considerou que tais acções com direitos especiais para o Estado português violavam regras jurídicas do mercado interno da União Europeia. Face às explicações do governo português, consideradas insatisfatórias, a Comissão avançou com um processo no Tribunal de Justiça da União Europeia em 2008. Um aspecto central da argumentação de defesa do Estado português no processo judicial que lhe foi movido foi a segurança energética. No texto do acórdão do tribunal pode ler-se o seguinte: “a República Portuguesa alega que tal ameaça [à segurança de abastecimento energético], tendo em conta a importância central da energia sob a forma de electricidade e de gás natural para todas as economias e sociedades contemporâneas, não tem de ser imediata [...].” Sobre esta argumentação, o Tribunal de Justiça da União Europeia fez a seguinte apreciação: a “argumentação não é completamente desprovida de fundamento. No entanto, uma vez que a República Portuguesa se limitou a evocar o motivo relativo à segurança do abastecimento energético, sem precisar as razões exactas pelas quais considera que cada um dos direitos especiais controvertidos, ou todos estes, permitiriam evitar tal afectação de um interesse fundamental da sociedade, uma justificação com base na segurança pública não pode ser acolhida no presente caso.” (Ver o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia no processo C-543/08 de 11/11/2010).

3. Na sequência da referida decisão judicial, em 2011 o Estado português abdicou das "golden-shares" na EDP sem qualquer compensação. (Note-se que o Tribunal de Justiça da União Europeia admitiu que o argumento do interesse estratégico e de segurança nacional não era "desprovido de fundamento". Considerou é que o Estado português não demonstrou que as restrições criadas pelas acções privilegiadas eram uma forma adequada de o fazer.) No contexto dos compromissos assumidos no âmbito do programa de assistência financeira do FMI, BCE e Comissão Europeia, vendeu, através da Parpública, a sua participação à China Three Gorges, que detém actualmente 23,27% das acções. Mas quem é a China Three Gorges? Sobre esta empresa informa a própria EDP que é "totalmente detida pela China Three Gorges (Hong Kong) Co. Ltd, cuja totalidade do capital social é detida pela CWE Investment Co. Ltd que por sua vez é detida na totalidade do capital pela China Three Gorges Corporation, que por seu turno é detida na totalidade do capital pela República Popular da China.” Uma outra empresa chinesa tem ainda uma participação no capital da EDP — a CNIC Co., Ltd com 4,98%. Ainda na informação institucional sobre os accionistas é explicado que a “sociedade Orise, S.a.r.l. é totalmente detida pela Kindbright Holdings Corp. Limited, cuja totalidade do capital social é detida pela CNIC Co., Ltd (anteriormente denominada Guoxin International Investment Co., Ltd), que por sua vez é detida na totalidade do capital pela República Popular da China. (Ver EDP, “Titulares de Participações Qualificadas e Direitos de Voto”).

4. Em 2017 a Comissão Europeia avançou com uma proposta de legislação com vista ao escrutínio de investimentos directos estrangeiros, ou seja, com origem em Estados exteriores à União Europeia. (Ver COM (2017) 487 — Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho que estabelece um quadro para a análise dos investimentos directos estrangeiros na União Europeia). Neste mesmo contexto, o Presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, afirmou que "se uma empresa estrangeira estatal quer comprar um porto europeu, parte de nossa infra-estrutura energética ou uma empresa de tecnologia de defesa, isso só deverá acontecer com transparência, escrutínio e debate”. (Ver “EU preparing to screen Chinese investments" in EU Observer, 14/09/2017). Não há qualquer dúvida de que a motivação principal subjacente a esta proposta legislativa da Comissão Europeia foi a crescente aquisição pela China de empresas em sectores estratégicos em vários Estados-membros da União Europeia e a vontade de a limitar, ou impedir, sempre que necessário. (Ver “Juncker aims to slam the brakes on Chinese takeovers” in Politico, 27/07/2017). Nesta altura, a legislação ainda não foi aprovada pelo que os europeus estão ainda sem um quadro jurídico que permita actuar de forma eficaz contra aquisições de actores externos em empresas de sectores estratégicos. Não é por meras razões de mercado que a OPA da China Three Gorges aparece nesta altura.

5. As empresas chinesas estão em clara ascensão na lista das maiores multinacionais do mundo (ver Fortune Global 500), sendo já mais de uma centena. Entre as cinco maiores multinacionais do mundo três são já chinesas: State Grid — que detém já 25% da empresa portuguesa Redes Energéticas Nacionais (REN) —, Sinopec Group e China National Petroleum). Ao contrário de que é usual na lógica capitalista liberal que influenciou ideologicamente a actual globalização, as multinacionais chinesas não são, na sua larga maioria, empresas privadas. Trata-se de empresas detidas pelo Estado chinês. (Ver “China's Global 500 companies are bigger than ever — and mostly state-owned“, in Fortune, 22/07/2015). Será esse facto inócuo ou um mero exotismo chinês? Não é, e deveria ser objecto de uma cuidadosa atenção para se perceber as suas potenciais implicações estratégicas no médio e longo prazo. Para os que acham que tudo isto é apenas uma questão económica e de mercado há uma leitura recomendável sobre a competição geoeconómica em curso no mundo: “War Other Means. Geoeconomics and Statecraft, Robert D. Blackwill e Jennifer M. Harris (The Belknap Press of Harvard University Press, 2016). Os capítulos que abordam a estratégia da China nessa competição são particularmente elucidativos.

6. A experiência de outros Estados com o investimento de empresas estatais chinesas em sectores estratégicos pode ser clarificadora da estratégia da China Three Gorges com a EDP. Duanjie Chen da Universidade de Calgary no Canadá fez uma análise de vários investimentos chineses nesse país. (Ver “China’s State-Owned Enterprises: How much do we know? From Cnooc to its Siblings” in University of Calgary, SPP Research Papers, 2013). Nas conclusões do seu estudo, Duanjie Chen realça que “as empresas estatais chinesas são a espinha dorsal de sua economia nacional [...]. Na altura em que a China estava a ingressar na OMC (final dos anos 1990 até 2003), havia grandes esperanças de que as estatais chinesas pudessem sofrer reformas e ser integradas no mercado livre unindo-se à economia global como cidadãos cumpridores das regras. Em vez disso, tornaram-se no braço forte do governo chinês para controlar a estrutura económica doméstica […] e expandir ferozmente o seu poder económico global […]”. A mesma ideia é reforçada por Duanjie Chen num outro artigo. (Ver “How China’s State-Owned Enterprises are disrupting free markets” in Macdonald-Laurier Institute 14/07/2017). Face a um possível acordo de comércio livre entre o Canadá e a China esta reitera que há um “firme apoio financeiro do governo chinês à expansão global das suas empresas estatais". Este não procura a "neutralidade competitiva e a reciprocidade" de mercados abertos, pelo que é imperativo evitar que empresas estatais da China "ganhem ‘entrada irrestrita’ numa pequena economia aberta”. A explicitação de Duanjie Chen sobre a estratégia chinesa de aquisições deveria fazer repensar profundamente o caso da EDP.

7. Se a Rosneft (petrolífera) ou a Gazprom (gás natural) da Rússia tivessem intenção de adquirir uma posição accionista maioritária na EDP podemos imaginar o que se diria e escreveria em Portugal. Mas ao contrário da Rússia — onde há uma tendência para sobrestimar, de forma distorcedora, os problemas estratégicos e de segurança que levanta na Europa —, a China parece ser um "anjo" da política internacional. Avaliada pela maneira como é habitualmente retratada nos media portugueses, os chineses fazem negócios, comprando, vendendo e investindo. Aparentemente, a política não lhes interessa muito. Não têm objectivos estratégicos ou de projecção de poder comparáveis a outras grandes potências, como a Rússia ou os EUA. Este é um erro de leitura da realidade. A cultura estratégica chinesa é sofisticada e orientada para o longo prazo na prossecução de objectivos de poder nacional. Fá-lo segundo uma grande estratégia que a integra o político, o militar e o económico. Os investimentos no estrangeiro em sectores como infra-estruturas portuárias, redes de distribuição de energia eléctrica obedecem, tudo indica, a essa lógica. Assim, não é preciso o pessimismo que impregna o livro de Graham Allison "Destined for War: Can America and China Escape Thucydides's Trap?" (Houghton Mifflin Harcourt, 2017) para perceber que as tensões comerciais e político-militares entre os EUA e a China são um risco no mundo em devir. Por isso, a necessidade de ter um controlo em sectores estratégicos e de segurança nacional, tal como foi argumentado pelo Estado português junto da Comissão e do Tribunal de Justiça da União Europeia, mantém toda a sua razão de ser. Permitir o controlo da EDP pelo Estado chinês é um erro estratégico com potenciais consequências graves no futuro.

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