A geração que recusou envelhecer

Agora que o Maio de 68 atingiu a idade exacta de meio século, tempo suficiente para o tornar objecto de uma visão telescópica e para avaliar os seus efeitos e sobrevivências na história contemporânea, talvez seja conveniente, mas um pouco trouble fête, recordar uma das suas amargas manifestações póstumas: aquela que foi apontada numa carta publicada em livro, um texto colérico escrito em 2009 por um grupo anónimo de jovens franceses que assumiam a condição de detentores de diplomas universitários, socialmente estáveis ou mesmo privilegiados, e dirigido “a essa geração que recusa envelhecer”. Quem assim vinha inquietar “a geração lírica” eram alguns membros selectos de uma “geração desclassificada”, em nome da qual eles falavam sem mandato. Uma “geração desclassificada”, em rigor, não é bem uma geração, é o produto fragmentado de um tempo que já nem fornece um acontecimento para partilhar colectivamente. E disso eles davam conta numa passagem da carta: “Nós, os filhos dos baby-boomers, nascidos depois de 1968, não temos o sentimento de pertença geracional”. Os pais deles, sim, experimentaram esse forte sentimento de pertença e reivindicaram-no com orgulho. Viveram mesmo euforicamente um modo de representação geracional que se compraz no balanço das vitórias e das derrotas. A palavra “geração” ganhou aí um forte odor a camaradagem que amolece ou anula as ideias. Na carta a esta geração que recusa envelhecer, os jovens reivindicavam tudo o que fora posto na lista dos hábitos desprezíveis: “Nós queremos casar, construir um lar, mobilizar-nos para o serviço militar, tornar-nos funcionários, ganhar a estabilidade que vocês [os pais] sempre desprezaram: somos os vossos novos reaccionários”. E denunciavam o o “psicocentrismo narcísico” dessa geração familiarizada com os conceitos e o vocabulário da psicanálise, promotora do “novo espírito do capitalismo” que lhe trouxe muitas regalias e bem-estar, sem que deste espírito expansivo beneficiassem os filhos, que têm boas razões para denunciar o egoísmo dos pais e todo o modelo educativo decorrente desse egoísmo infantil.

Estes “novos reaccionários” que reclamam a pertença a uma geração desesperada e cuja representatividade ideológica é difícil medir (mas que é de uma inquestionável representatividade sociológica) não se confundem com os velhos reaccionários que não suportam as mínimas perturbações no curso da História, sobretudo aquelas que irrompem com uma feição temporária e um carácter táctico, como são as revoltas, ou as que têm um alcance estratégico de longa duração, visando uma transformação no tempo histórico, como são as revoluções. Foi, aliás, a estes velhos reaccionários que se vieram juntar muitos “soixante-huitards”, ao regressarem a casa, no mês seguinte ou muitos anos depois. E uma vez instalados num conservadorismo tradicional, defendem a nova casa com um discurso tão cheio de palavras de ordem como quando militaram em nome de uma “geração lírica”. Sobrevivências históricas do Maio de 68 há muitas, certamente, e ao longo deste mês e deste ano não vão parar os balanços, as memórias e as revisitações. Entre essas sobrevivências, sempre foi fácil identificar dois grupos de relevo: aqueles que ficaram cristalizados nesse tempo histórico-político da interrupção; e os que saíram dele pela porta clandestina da denegação. No entanto, o grupo de maior relevo é aquele que, no fundo, faz uma síntese desses dois: essa geração que chegou à velhice recusando envelhecer. Foram os protagonistas de um apocalipse cultural.

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