“Descobertas”: uma palavra pequena

Recusar a palavra “descobertas” para designar um novo museu significa promover uma análise mais complexa, global e inclusiva.

Na crónica “O esplendor do politicamente idiota” (Expresso, 28 de Abril), Miguel Sousa Tavares (M.S.T.) indigna-se contra os signatários da carta aberta publicada no Expresso online de 12 de Abril, na qual se recusa a atribuição do nome “descobertas” a um museu dedicado aos processos desencadeados pela expansão portuguesa. M.S.T. acusa os signatários de terem vergonha da história de Portugal e de promoverem um projecto ideológico alternativo, à custa dos impostos de todos: a construção de um “museu contra a nossa História”, um “museu de autoflagelação”. Estas são acusações falsas, pois distorcem o conteúdo da referida carta, com a qual se pretendeu, acima de tudo, abrir um debate em torno aos problemas que o uso do vocábulo “descobertas” encerra.

A distorção interpretativa de M.S.T. é sintetizada na etiqueta depreciativa que cola à posição dos signatários da carta aberta: o rótulo de “politicamente correcto”. Esta etiqueta, usada com sarcasmo no título da crónica, visa desacreditá-los, apesar de o colunista não apresentar um único argumento consistente que contrarie os problemas historiográficos e éticos por eles levantados. A acusação de “politicamente correcto”, mesmo quando disso não se trata, tornou-se hoje uma forma banal e conservadora (à esquerda e à direita) de silenciar perguntas e posições incómodas, e de evitar discutir tudo aquilo que pode pôr em causa o que se aprendeu e se tem como adquirido. Tal como alguns não suportam que se discuta a posição que as mulheres têm na sociedade, ou a discriminação dos mais variados grupos sociais, outros não aceitam que se questionem certas palavras, e o poder que estas tiveram e têm para criar e/ou reforçar ideias herdadas do passado e sobre o passado; palavras que transportam, invariavelmente, forte carga ideológica.

No caso da palavra “descobertas”, esta carga ideológica é considerada intocável, dada a sua associação aos sentimentos mais profundos da “identidade nacional”. Ora, os signatários da carta cometeram o pecado de lembrar que o vocábulo “descobertas” (tal como o vocábulo “descobrimentos”) esteve sistematicamente associado a projectos nacionalistas, desde pelo menos o final do séc. XIX, neles se incluindo os nacionalismos salazaristas, republicanos, integralistas, e outros anteriores e posteriores. M.S.T. indigna-se com tal associação, considerando que, com ela, os signatários da carta apagam as dimensões positivas das navegações marítimas quatrocentistas e quinhentistas. Esquece-se M.S.T. que, e ao invés, é a obsessão com as “descobertas” que tem excluído partes importantes da história portuguesa, e ocultado o papel de pessoas e experiências das culturas e sociedades que nela estiveram envolvidas. Para além das suas conotações revivalistas e eurocêntricas, as palavras “descobertas” e “descobrimentos” são palavras pequenas, incapazes de abarcar a multidimensionalidade dos processos associados às navegações marítimas, limitando o âmbito de apresentação dos portugueses a um período de apenas dois séculos. Ao evocarem viagens, rotas e inovações científicas e tecnológicas, elas excluem várias coisas. Excluem as interacções quotidianas entre sociedades e culturas que se desconheciam mutuamente, e naturalmente os efeitos das relações assim estabelecidas, incluindo a guerra, a escravidão, o racismo, a discriminação. Ou a reflexão sobre a maior e mais continuada emigração europeia para fora do continente antes da explosão de meados do séc. XIX. E várias outras dimensões poderiam ser acrescentadas. Recusar a palavra “descobertas” para designar um novo museu significa, pois, promover uma análise na longa duração, mais complexa, mais global e mais inclusiva.

A revisitação histórica e a recusa de visões simplistas e parcelares são exercícios fundamentais de e para uma cidadania consciente, informada, crítica — aquilo que tantas vezes se acusa de, na sociedade portuguesa, não existir. Entre os signatários encontram-se, precisamente, muitas das pessoas que, nas últimas décadas, produziram conhecimento científico de referência sobre temáticas associadas à expansão dos portugueses. É verdade que a maior parte delas não escreve colunas nos jornais, nem aparece na televisão. É por isso que é tão importante que M.S.T. se disponha a dialogar com elas e que os leitores possam partilhar a discussão sobre os problemas que existem com as palavras que reproduzem a imaginação histórica em que foram educados.

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