O último dia no Mercado Bolhão, entre o querer sair e o querer ficar

Foi só mais um sábado no Bolhão — ou assim pensavam os turistas que entram no mercado centenário pela primeira vez. Foi tudo menos um sábado normal no Bolhão, mostraram os comerciantes do Porto que de lá vão sair (temporariamente).

O dia em que o Bolhão fechou e disse "até já"

Não há rosas no mar de flores que Carlos Cerqueira semeia junto ao último degrau da escadaria do Mercado do Bolhão, no Porto. Porque tanto tempo ali plantado “nunca poderia ser só um mar de rosas”. Porque durante todos estes anos raro era o dia em que não tinha de dizer, meio sério, meio a brincar: “Rosas e flores são na florista ali do lado, minha senhora”; que ali, na primeira banca em que os turistas se debruçam para fotografar mal passam o portão de ferro, e antes de descerem rumo às peixeiras e às mesas de souvenirs, vendem-se plantas, ainda no vaso, ainda com as raízes fincadas na terra — como as dele, naquele sítio.

A quem as compra uma última vez antes de se fecharem os portões de ferro, este sábado, lembra que depois, com o tempo, é melhor passá-las para um vaso maior. “Para continuarem vivinhas”, explica. E é assim que encara a mudança para o mercado temporário que se vai instalar a pouco mais de 200 metros dali, no piso -1 do centro comercial La Vie, antigo Gran Plaza, a partir de quarta-feira, 2 de Maio, e até ao final dos dois anos de obras que estão planeados no Bolhão. Só lamenta que a empreitada não “tenha arrancado mais cedo”. E só avisa que “há muito trabalho a fazer”, “demasiado” para estar confiante de que se “consiga cumprir o prazo [estipulado]”. "Acredite em mim e nos meus 67 anos!"

Fora isso, é um dos comerciantes que sorri e congratula o executivo de Rui Moreira pela chegada das obras há “muito desejadas”. De sorriso sabido, diz que irá continuar a “marcar a entrada” do espaço provisório na rua de Fernandes Tomás, “lugar privilegiado” onde estará para “dar as boas-vindas a quem quiser entrar”. “Na hora de escolher quem ia ser o primeiro a ser visto olharam para mim e não tiveram dúvidas”, graceja. Se é por culpa dele, se dos vasos verdes agora alegremente pintalgados pela Primavera, deixa “ao critério” de quem passa avaliar.

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Não lhe dizemos para que não fique triste, mas vemos pelo canto do olho que é a outra banca que os turistas se atiram que nem gatos. Somos atraídos pelas palmas que os visitantes batem, com os cotovelos junto ao corpo, de modo a conseguirem segurar os selfie sticks que segundos antes tinham em riste, apontados a Natalina Gonçalves, 70 anos. O fim da canção interrompeu as filmagens. E o grupo de alemães voltou a contornar a esquina, olhos presos aos telemóveis.

O Bolhão é nosso/ o Bolhão é nosso/o Bolhão é nosso e há-de ser (…) O Bolhão é nosso até morrer. Era isto que a peixeira cantava momentos antes, com a voz a tremer-lhe. “Se calhar não perceberam o que eu estava a dizer, mas não faz mal, eu ao fim de 25 anos sei bem o que quis cantar.” Chegou a pedir a indemnização para sair de vez. Voltou atrás. Agora “a gente morre no Bolhão, passamos pela Capela das Almas [de Santa Catarina] e daí seguimos directos para o cemitério, porque naquela cave nem vemos a luz do dia”. E solta uma gargalhada, ao mesmo tempo que limpa os olhos.

A balança já está arrumada para ir pesar para a outra morada, a arca ainda lá fica porque “pegando nela ficava sem pernas”. Ela assim está: um pé ali, outro lá.

— “Cuidado com os pés!”, ouve-se gritar alguém de mangueira na mão (e “como vai ser com os sons do Bolhão?”, pergunta outra)

— “Tanta água, para que é que estás a limpar aí, não sabes que isto vai fechar?”

—“Ó, pronto, lá estás tu, é da maneira que já fica para quando abrir.”

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Das souvenirs, só ficam as (curtas) lembranças

“Açúcares.” Gomas, rebuçados, gelados, chocolates. “Coisas que não compro e nunca vendi”, resume, com um encolher de ombros, Maria José Macedo, 57 anos. Quando murchou o negócio das flores artificiais, as souvenirs começaram a ganhar espaço naquela banca e em muitas outras que ocupam a parte central do mercado (ímanes, bases em cortiça, mini-garrafas de vinho do Porto, azulejos, galos de Barcelos, barcos rabelos e pipas em miniatura). E é disto que se enchem as mochilas dos turistas, que não podem aproveitar os legumes e peixe fresco. Mas estes itens não viram luz verde para continuarem a ser vendidos doravante, conta, a menos que sejam produzidos por artesãos certificados. Por isso é que alguns dos 82 comerciantes que deverão instalar-se no shopping La Vie, ao longo dos próximos dias, tiveram de dar uma nova roupagem às bancas. “Já disse que também devo ter mel e marmelada? Vai ser tudo doce!” Incluindo os novos ares: “Quem muda Deus ajuda, e sabe”, confessa, “eu também já estava cansada de estar aqui”.

Um abraço demorado (foram muitos os abraços durante a manhã de sábado) corta a conversa. “São precisas toalhas para limpar tanta lágrima hoje”, exagera um cliente que anda, de braços abertos, a palmilhar todas as bancadas. Não será tanta a necessidade — muitos que tinham a dar um adeus definitivo já lá não apareceram — mas se fosse, as toalhas estendiam-se na banca ao lado. Emília Neves bem que as está a tentar vender e a um preço especial. Tem de se despedir delas, como antes já se despediu da fruta e da carne e dizer olá ao artesanato que deverá chegar de Viana do Castelo, Alentejo, Lixa, Barcelos. A comerciante de 77 anos ainda não definiu o novo horário, e a indecisão é, de, resto, quase unânime. Pondera trabalhar das 8h às 20h, já que o período de abertura vai ser estendido nos dias úteis para lá das 17h habituais, ou das 13h, aos sábados. 

É para aí que os ponteiros do relógio caminham. E a sirene que alerta para a meia hora até ao fecho ecoa, pontual. Os visitantes espraiam-se pelas escadas, a admirar as barracas. Patamares acima, os músicos de rua embrulham os tapetes. Há etiquetas de preços que baixam. Tiram-se (ainda) mais fotografias. Dão-se ainda mais abraços. As caixas amontoam-se pelos cantos. Rui Moreira troca beijinhos e volta a insistir na necessidade de “a cidade responder” e continuar a comprar no mercado temporário. A primeira “ajuda” vai ser dada logo na inauguração com a visita de Marcelo Rebelo de Sousa. Não que o presidente da câmara precisasse de relembrar a pequena plateia que o ouvia. O assunto correu de boca em boca durante toda a manhã, quando era preciso um tema para interromper lamentos. “Vai ser só tirar, como é que é, selfes!”, ria-se Maria do Céu enquanto a Dona Rosa lhe enchia um saco com azeitonas. “Já tenho anos de treino disso, Maria, aqui também já é só tirar fotografias, não fazemos outra vida!”

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São 13h. Está mesmo a fechar o mercado do Porto, anuncia o toque do sino, pela mão de Rui Moreira. As comerciantes espreitam, a medo. "Parece que é mesmo desta." Queriam obras, mas querem que se saiba que vão ficar “sempre inacabadas” senão voltarem a assentar, atrás das bancas, os “verdadeiros” alicerces do Mercado do Bolhão. O que é que vai deixar mais saudades? “É tudo, minha querida, é tudo.” A última frase acompanha o fecho do portão. “Vai ser uma escuridão. É sempre difícil deixar o Bolhão.” 

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