No 2.º Torrão, há “milagres” de braço dado com a “dura realidade”

Associação Cova do Mar tem a correr uma campanha de crowdfunding desde Agosto para garantir verbas que mantenham a Fábrica dos Sonhos aberta. Pede agora a ajuda a quem queira ajudar a continuar a concretizar os sonhos dos miúdos que vivem com poucas condições naquele bairro da Trafaria.

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Nuno Ferreira Santos
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Pisar o 2.º Torrão é entrar no país de há duas décadas, quando as construções precárias, as "barracas", marcavam a paisagem das cidades e se começavam a dar os primeiros passos para dar uma casa condigna a quem ali morava. Ali, em Almada, o bairro mantém-se praticamente inalterado há 40 anos, desde que os pescadores se começaram a aglomerar junto ao rio Tejo e a construir de forma clandestina. Há casas que se mantêm sem saneamento básico, sem acesso à água. A electricidade é escassa e feita, muitas vezes, com puxadas ilegais. Há relatos de violência escondidos num bairro que ainda passa despercebido a quem segue pela Trafaria, a caminho das praias da Caparica, e que está apenas a uma ponte de distância de Lisboa.

Alexandra chegou ao bairro no final de 2016, para montar a Fábrica dos Sonhos, um espaço que é uma espécie de ATL, onde crianças e jovens do bairro pudessem ocupar os tempos livres. Quase dois anos depois, a Fábrica tem cerca de 70 inscritos, mas Alexandra teme não conseguir manter a casa a funcionar depois de Maio, se não entrar mais dinheiro na associação. É por isso que continua a campanha de crowdfunding que a Associação Cova do Mar, que Alexandra preside, tem neste momento a decorrer. Faltam-lhes cerca de cinco mil euros para assegurarem o funcionamento da Fábrica até ao início do próximo ano lectivo. 

Alexandra Leal tem 34 anos e uma carreira profissional ligada à gestão financeira que abandonou quando o trabalho a levou à exaustão e a fez parar e não querer mais voltar a trabalhar na área. Se o início de 2015 foi atribulado, o período de recuperação que se seguiu não foi menos do que isso. Era tempo, diz Alexandra, de recuperar o sonho antigo de criar um campo de férias gratuitos, para que os miúdos pudessem ter uns dias de escape e não ter de pagar por isso.

Nesse tempo, tirou o curso de monitora e arregimentou uma equipa de voluntários para tornar esse sonho possível. E assim foi. Nesse Verão, durante três dias, os miúdos da Cova do Vapor tiveram um campo de férias no próprio bairro. Só que a partir daí, Alexandra conta que percebeu que os campos não eram suficientes para ajudar, "como queria", a população daqueles bairros.

"Vamos focar-nos naquilo que não existe", lembra então a antiga gestora financeira. Foi assim que desafiou o avô José Gonzalez a fundar a Associação Cova do Mar, no início de 2016. Primeiro, para assegurar que os campos de férias continuavam. Depois, para ir mais longe e não dar apenas apoio no período de férias. "Nós queríamos voltar a brincar com os putos", diz Alexandra. O "sonho" era então criar um ATL gratuito, para onde as crianças pudessem ir depois da escola.

Apresentou o projecto à Câmara Municipal de Almada para pedir apoios, já em Novembro de 2016, e foi a autarquia que lhe sugeriu que realizasse também uma colónia de férias de Natal no bairro do 2.º Torrão. Se a Cova do Vapor tinha poucos recursos, o 2º Torrão “ainda tinha menos”, disse-lhe a autarquia. 

Foi assim que entrou no bairro que pouco conhecia. “Eu não tinha consciência do que se estava a passar aqui”, confessa. A autarquia cedeu-lhes uma casa do bairro que uma família tinha deixado para trás por ter sido realojada.  

Quando entrou no espaço que seria transformado na Fábrica dos Sonhos não havia água, nem electricidade, nem fechadura na porta. Os vidros das janelas estavam partidos. O frio era insuportável. “A puxada ilegal para ligar a electricidade custava 150 euros. Só tinha 50 na conta da associação”, recorda Alexandra. Mas a Fábrica avançou: o espaço foi limpo e pintado. “Foram as pessoas que nos salvaram”, diz, com os olhos mareados, lembrando-se da gente que bateu e continua a bater à porta para ajudar. 

As colónias de férias acabaram por se realizar. A Fábrica também avançou, não sem escapar a diferendos com a autarquia. A tristeza, diz Alexandra, foi passando "a revolta, a resistência". Hoje, mantêm-se ali, com o trabalho de voluntários que também não querem que o projecto morra. 

"Ter uma voz independente"

Abrir a Fábrica todos os meses custa cerca de dois mil euros. É a luz, a internet, o seguro para as crianças, os lanches, algumas actividades e o salário de Alexandra que se dedica em exclusivo àquele centro. “Às vezes temos 30 crianças aqui. Se quiserem repetir o lanche são 60”. Em certas alturas, é preciso pagar desinfestações de pragas – carraças, pulgas, ratazanas. Por ano, as despesas fixam-se nos 22 mil euros, aponta. 

"Quando falha a luz isto é um bunker", nota. Em Janeiro, estiveram três dias sem luz. É um ponto azul no meio de casas descascadas, outras que são apenas cascalho. O interior está revestido a madeira, depois da recente reabilitação que foi oferecida por uma loja de bricolage. Ainda no início do mês, receberam 1400 embalagens de leite de uma empresa de distribuição, que será entregue às famílias do bairro. “Uma senhora mandou-nos umas saias havaianas feitas por ela mesma para os miúdos brincarem”, mostra Alexandra. Vai havendo sempre quem ajude.

“Já devíamos era ter uma equipa no terreno”, diz Alexandra, que com estas entregas se esforça por recolher mais dados sobre o bairro, que diz serem muito incipientes. De acordo com os números do último Censos, de 2011, viviam naquele bairro 1096 habitantes. Na contagem que a Associação de Moradores fez, em 2016, estão cerca de 3000. Desses, aponta Alexandra, mais de 200 são crianças e jovens dos seis aos 17 anos.

As mesas novas de madeira já estão manchadas pelas tintas com que os miúdos se entretêm depois da escola. Ali, diz Alexandra, a preocupação também é “a de formar cidadãos”. Há uma lista de tarefas, onde se inclui cuidar do Max e do Floquinho, os cães que guardam a casa.

Em Setembro, no início do ano lectivo, fizeram uma campanha de recolha de material escolar para fazer kits para os miúdos do bairro. O apelo foi feito nas redes sociais, o passa-a-palavra também ajudou. As pessoas começaram a enviar materiais – chegou até uma encomenda com o remetente da Assembleia da República com dossiês e canetas, conta Alexandra. 

“Pusemo-los a fazer inventários do material escolar para aprenderem”, diz. São também as crianças que arrumam a roupa que as pessoas doam, que a separam por tamanhos, antes de a levarem para casa. 

Entre as actividades da Fábrica dos Sonhos estão as idas ao cinema, a aulas de bodyboard, de karaté. Têm também uma iniciativa que chamaram de “Querido mudei o bairro”, em que o objectivo é arranjar algumas das casas que estão em pior estado e arranjar os quartos dos miúdos, tornando-os mais confortáveis. Há ainda professores voluntários que vão à Fábrica dos Sonhos dar aulas de apoio. 

Começaram por abrir só aos sábados, mas, desde o início do ano lectivo, abrem cinco dias por semana, das 15h às 19h30, para cumprir a missão de serem o tal ATL para as crianças.

“É uma missão humanitária do outro lado da ponte”, que se diz agora de mãos e pés atados “sem poder pensar no próximo ano lectivo”. E apelam a quem os queira ajudar a continuar a concretizar os sonhos dos miúdos que vivem com poucas condições neste bairro da Trafaria. E, salienta Alexandra, quer continuar a ter "uma voz independente", que não esteja condicionada por dinheiros governamentais. 

Para já, ainda anseiam a visita do Presidente da República, pedido feito através de uma petição lançada em Janeiro, que tem reunidas perto de 800 assinaturas.

Ali, no 2.º Torrão, há “milagres” que vão acontecendo, dando folga à “realidade dura”, diz Alexandra. “É como se, às vezes, tu desistisses do sonho, mas o sonho não desistisse de ti”.

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