O sujeito digital

“Criar eventos” é um serviço de relações sociais e públicas que o Facebook presta a quem queira publicitar acontecimentos como o lançamento de um livro, um colóquio, um debate, etc. Em boa verdade, não se trata de criar nada, mas de publicitar. A formulação parece, pois, fraudulenta. No entanto, ela tem uma parte de verdade porque é ali, no aquário digital, que o “evento” se cumpre em grande medida. Aquilo que virá a realizar-se, colocando as pessoas em presença, é apenas um acontecimento diferido daquilo que se passou antes, que foi o anúncio, o acto de tornar público. Muitas vezes, “criar o evento” dispensaria até que ele se realizasse, se não houvesse necessidade de manter sólida a relação fiduciária com uma realidade que, neste processo, acaba por se tornar algo tão abstracto como o acontecimento virtual que a “criou”. Por isso, aliás, é que há sempre um enorme desvio entre o número de pessoas que prometem ir ao “evento” e o número muito menor daqueles que de facto acabam por comparecer. Muitos dos que aderiram a ele sentem que cumpriram a sua missão nessa promessa pública que não precisa de ser cumprida porque ela já realiza, antecipadamente um acto: quando salguém diz “eu irei” ou, numa outra formulação que só serve para preservar as aparências da ordem analógica, “estou interessado” em ir, está já a proferir um enunciado performativo. Podemos até identificar um novo tipo de frustração: há pessoas com um enorme sucesso e carisma digitais que não conseguem depois confirmá-los no mundo real. O factor da concorrência é muito importante: tal como é lógico e admissível prometer ir a dois “eventos” que terão lugar ao mesmo tempo em sítios diferentes, os fãs de uma personalidade com sucesso têm também outros ídolos e partilham os amores e as adesões por muitas igrejas. Mas quem se vê agraciado com tantas provas de amor e adesão tende a pensar que beneficia delas em exclusivo, não se lembra que é um simples “evento” entre muitos “eventos”; e que, por exemplo, se publica um livro não vai conseguir arrastar até à livraria, para comprar o seu livro e depois lê-lo, nem sequer uma ínfima parte de quem aderiu ao “evento”. Além disso, este sistema permite contabilizar facilmente as adesões e os índices de circulação, mas já não consegue contabilizar as rejeições e os seus efeitos. Um exemplo: aquele tipo de artigos que nos jornais online garantem muitos clicks e comentários (há mesmo quem procure este efeito em tudo o que escreve) têm um sucesso mensurável que entra nos cálculos editoriais, mas fica sempre por medir quantos leitores o jornal afasta de uma vez, ou progressivamente, dessa maneira. Por isso é que a contagem das audiências, “a ditadura do audimat”, como se diz em França, revela apenas a parte iluminada da realidade, mas nunca a sua sombra. Na televisão, isto é ainda mais óbvio: a corrida pelas audiências é de tal ordem que a estratégia para as manter se revela a estratégia fatal para as perder.

Tudo aquilo de que falámos até agora remete, evidentemente, para um mundo social que tem a Internet como instrumento de unificação dos seus actores e grupos. Estamos a falar de um novo sujeito, pós-histórico, que é o sujeito digital. Ele está na base desta nova situação: hoje, os momentos tradicionalmente sociais da vida pública estão a desaparecer e a ser substituídos pela sua versão online, em que os actores não participam em carne e osso, não se confrontam cara a cara, mas como utilizadores da rede, o que os torna semelhantes e homogéneos, para além das diferenças ideológicas, biográficas e de género.  

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