Zama é o livro que levou o Nobel Coetzee a afirmar que “o grande romance americano” foi escrito por um argentino: Antonio di Benedetto

O seu nome eclipsou-se após a sua morte, em 1986. Mas a tradução para a língua inglesa do romance que dá nome ao filme de Martel e as críticas em jornais e revistas de referência trouxeram de novo Antobio di Benedetto para a galeria dos grandes autores.

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Em Zama conta-se a história de um oficial do império colonial espanhol, don Diogo de Zama, destacado no Vice-Reino do Rio da Prata (hoje o Paraguai), e que aguarda a notícia de uma promoção e transferência para Buenos Aires; mas os anos vão passando e a notícia tarda em chegar
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Antonio di Benedetto (1922-1986) foi, até há pouco tempo, um dos nomes mais bem guardados da literatura latino-americana. Tendo sido reconhecido pelos seus pares (Jorge Luis Borges e Roberto Bolaño, entre muitos outros), pelos críticos e por outros estudiosos da sua obra, o seu nome como que se eclipsou poucos anos depois da sua morte. Mas recentemente, e graças à notícia de que Lucrecia Martel preparava um filme baseado no seu romance Zama, de 1956, a sua obra voltou a despertar o interesse de editoras estrangeiras e do público. Foi a tradução para a língua inglesa (2016) do romance que dá nome ao filme, e as consequentes críticas em jornais e revistas de referência, que trouxeram de novo o nome de di Benedetto para a galeria dos grandes autores. Mas de entre os muitos textos críticos, teve impacto a longa recensão feita pelo prémio Nobel J. M. Coetzee, na The New York Review of Books (em Janeiro de 2017), com o título “Um grande escritor que devíamos conhecer”.

Em Zama conta-se a história de um oficial do império colonial espanhol, don Diogo de Zama, nos últimos anos do século XVIII (a narração inicia-se em 1790), destacado no remoto Vice-Reino do Rio da Prata (território que é hoje o Paraguai), e que aguarda o recebimento da notícia de uma esperada promoção e consequente transferência para Buenos Aires, onde a família o espera. Mas os anos vão passando e a notícia tarda em chegar. Na sua vida atormentada em que os anos se arrastam, pontuam os conflitos sexuais, financeiros e existenciais, que à vez ocupam cada uma das três partes do livro. Mas don Diogo de Zama reflecte essencialmente sobre o deserto, que era essa parte do continente (não apenas um deserto no sentido metafórico); mas ele é um “criollo” (espanhol nascido nas Américas), e a Coroa desconfiava deles, por isso eram preteridos nas escolhas para a ocupação de altos cargos nas colónias.

A personagem de Zama vive num deserto civilizacional, numa sangrenta “zona de fronteira”, e Coetzee, na referida recensão, lê nas preocupações existencialistas a que o narrador se entrega, a “falta de realidade” daquela América, “uma terra plana e em cuja vastidão ele se sente perdido”; chegando mesmo a afirmar que talvez “o grande romance americano” tenha sido escrito por um argentino. Para alguns críticos latino-americanos, esta ideia de “deserto” em Zama (que parece povoar o imaginário cultural e histórico da Argentina desde o século XIX), torna-o “parente” de duas outras obras-primas: Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, e Grande Sertão: Veredas, do brasileiro Guimarães Rosa. E já que se nomeiam parentescos literários, haverá outros que acorrem ao leitor ao perceber que um dos temas a que Zama se obriga é o da “espera”, e aí surge outro icónico romance latino-americano, Ninguém Escreve ao Coronel, de García Márquez. A “espera” parece ter sido tema recorrente em di Benedetto, de tal maneira que a editora El Aleph reeditou os seus romances seguintes, El Silenciero (1964) e Los Suicidas (1969), num volume a que chamou Trilogia da Espera.

A escrita de Zama é de um grande cuidado narrativo, trabalhada como um bordado, o que a torna numa linguagem singular pontuada por registos variados, desde o discurso com retórica política, passando pelo polimento do castelhano do século XVIII, até à eloquência quase delirante da fala dos vilões.

Ditadura argentina

Antes de se afirmar como escritor, Antonio di Benedetto destacou-se nas muitas reportagens luminosas e assertivas que fez como jornalista – profissão que exerceu durante quatro décadas. O facto de ter nascido, e vivido, fora de Buenos Aires (era natural de Mendoza, onde viveu), afastou-o sempre da ribalta e acabou por lhe dar uma outra maneira de olhar. Nisto parece-se com um outro grande escritor argentino, Juan José Saer (natural de Santa Fé), e a sua “escrita não passa por Buenos Aires, nem física nem mentalmente”, usando as palavras do crítico Carlos Gamerro. Nas suas obras principais, Zama e O Enteado, respectivamente, ambos recriam o período da conquista e da colonização pela Coroa espanhola, criando a sua própria visão do homem hispano-americano em formação.

A sua carreira literária (e jornalística) foi abruptamente interrompida em 1976, no dia do golpe de estado em que os generais tomaram o poder. Nesse mesmo dia foi preso na redacção do jornal onde trabalhava, e passou dezassete meses no célebre cárcere de onde saíam os prisioneiros que depois eram atirados de um avião com uma pedra presa aos pés para as águas do Rio da Prata. Antonio di Benedetto foi torturado e padeceu vários simulacros de execução. Foi libertado graças aos esforços de vários intelectuais argentinos – entre eles, Borges – e obrigado a partir para um exílio em que viveu na miséria. Regressou à Argentina na década de 1980, mas a depressão e os pesadelos recorrentes nunca mais o deixaram viver em paz.

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