Estudo genético esclarece o que separa o cavalo do burro

Equipa de cientistas fez um estudo genético mais detalhado do genoma do burro doméstico e comprova que a sua separação do grupo que hoje inclui o cavalo terá ocorrido há quatro milhões de anos.

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Burro doméstico num parque na Dinamarca Zoo de Copenhaga/Frank Rønsholt

A relação que temos com o burro é confusa e bipolar. Se por um lado, o queremos proteger e nos enternece, por outro, este animal é muitas vezes usado para o escárnio e maldizer, já para não falar do facto de a sua definição, no dicionário, juntar “o mamífero da família dos equídeos, menos corpulento que o cavalo” ao sentido de um “indivíduo estúpido ou teimoso; imbecil”. A verdade é que na ciência o burro não tem estado no centro das atenções, sobretudo quando a comparação é feita com o seu parente próximo, o cavalo. Agora, uma equipa internacional de cientistas apresentou, na revista Science Advances, uma nova e detalhada análise do seu genoma que podem ajudar a esclarecer alguns pormenores da sua origem e evolução ao longo da história.

Os cientistas da Dinamarca, Malásia, França e Reino Unido uniram-se para saber mais sobre o burro. Usando uma nova tecnologia de montagem do genoma, os investigadores conseguiram identificar estruturas subcromossómicas que, segundo adiantam, permitem uma leitura dos detalhes genéticos quatro vezes superior à conseguida por esforços feitos anteriormente. Esta leitura genética melhorada tornou possível um “confronto” mais claro entre os genomas de cavalos e burros, que há quatro milhões de anos partilharam um antepassado comum. A análise examinou algumas zonas nos cromossomas com rearranjos que podem explicar a divergência da espécie nestes animais e, em última análise, a sua especiação.

“Embora uma montagem de genoma de alta qualidade a nível cromossómico esteja disponível para o cavalo, as montagens actuais disponíveis para o burro estão limitadas a estruturas de tamanho moderado. A ausência de uma montagem de melhor qualidade para o burro tem dificultado estudos envolvendo a caracterização de padrões de variação genética”, referem os autores do artigo publicado na Science Advances. Faltava, argumentam, uma caracterização mais exacta das diferenças (genéticas) associadas à especiação e domesticação.

A nova “montagem” do genoma do burro doméstico fornece “estruturas de tamanho subcromossómico”. O objectivo era obter informações mais exactas das variações genéticas para espécies equinas diferentes do cavalo e detectar os “pedaços” que terão contribuído para a sobrevivência e evolução dos burros domésticos. Entre outras diferenças e rearranjos nos cromossomas, detectaram-se translocações e inversões que ajudam a explicar como os burros se separaram das outras espécies equinas. Este esforço pode ser útil para a conservação da espécie, ainda que de forma limitada, uma vez que esta espécie tem grande diversidade genética. No entanto, quanto mais soubermos sobre o burro mais fácil será preservá-lo.

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Zoo de Copenhaga/Frank Rønsholt

“A família equina floresceu nos últimos 55 milhões de anos e conta com mais de uma dúzia de géneros descritos no registo paleontológico. Hoje, no entanto, é composto apenas por um único género, Equus, que inclui três zebras e três espécies de asnos, além do cavalo. O antepassado comum mais recente do género viveu entre há quatro milhões e 4,5 milhões de anos”, começa por referir o artigo sobre o burro que lembra ainda impacto na história humana do sucesso dos processos de domesticação do burro e do cavalo. “Embora trabalhos genómicos extensos tenham sido realizados para estudar o processo de domesticação do cavalo, esse processo não é tão bem documentado nos burros”, acrescentam os cientistas.

Próximo episódio: o burro mirandês

Na verdade, sabe-se que a domesticação do burro aconteceu em África. Em 2010, um artigo publicado na revista Proceedings of the Royal Society B com a participação do investigador português Albano Beja Pereira, do Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, da Universidade do Porto, esclarecia que o burro selvagem da Núbia, região no vale do Nilo entre o Egipto e o Sudão, era o primeiro pai do burro doméstico.

Foi a equipa de Beja Pereira, também com estrangeiros, que em 2004 pôs fim à controvérsia sobre a origem da domesticação do burro, num artigo na revista Science. Havia cientistas que defendiam que o burro doméstico (Equus asinus, o nome científico da espécie) descendia do burro selvagem africano (Equus africanus) e que a domesticação tinha sido no Norte de África. Mas como o burro selvagem africano também viveu em Israel, na Síria, no Iraque e no Iémen, outra corrente advogava que a domesticação tinha sido no Médio Oriente. Ao analisarem ADN de burros selvagens africanos e de burros domésticos de 52 países, em 2004 os cientistas anunciaram que a domesticação tinha de facto ocorrido em África.

Sobre o novo estudo publicado este mês na Science Advances e no qual não participou como autor mas apenas na revisão do artigo, Albano Beja Pereira esclarece que “é a nova referência para os projectos sobre o burro doméstico”. Segundo explicou ao PÚBLICO, até agora existiam “12 genomas do burro que foram o resultado de uma ressequenciação do genoma cujo molde é o cavalo”.

Agora, e embora este estudo ainda não permita saber com precisão que genes se encontram em todos os cromossomas do burro, esta “montagem” melhorada do genoma (chamada “de novo” e que permite uma reconstituição do genoma a partir de pequenos fragmentos) tem como “molde” o burro. Mais precisamente, os cientistas referem no artigo que se apoiaram num burro chamado Willy, nascido no Jardim Zoológico de Copenhaga, a 26 de Junho de 1997. Albano Beja Pereira promete mais um contributo para o puzzle genético cada vez mais nítido que se vai desenhando sobre o burro doméstico e antecipa que, em breve, deverá ser publicado um artigo, no qual participou, com os resultados de um projecto da montagem “de novo” do genoma que usou como “molde” o burro mirandês.

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