Identidade, que grande notícia nos trazes quando chegas às nossas vidas

A autodeterminação de género, sendo um direito fundamental, deverá estar para além de quaisquer entraves impostos pelo legislador.

“Identidade, que grande notícia nos trazes quando chegas
às nossas vidas e nos acompanhas nessa viagem
ajudando a entender-nos e a conhecer-nos melhor!
Que grande alegria sentimos quando brilhas na nossa
humanidade, longe daquelas pesadas cargas que
nos colocaram ao nascer! Identidade, um tesouro que brilha
em nosso Ser e nos enche de felicidade quando
decidimos empreender essa viagem livrando-nos de todas as
camadas que não nos deixavam ser”
Niurka Gibaja Yábar, coordenadora do projecto Trans Cogam [1]

A identidade de género corresponde ao mais profundo do ser humano. Às pessoas cuja identidade de género não coincide com a que lhes foi atribuída ao nascer, e ao debate gerado em torno das suas experiências e das suas reivindicações, devemos esse importante conhecimento. Esta sua verdade, cada vez mais afirmada na sua diversidade, é no entanto, e surpreendentemente, também a nossa verdade. É a verdade da condição humana, de uma condição livre e plural cujo reconhecimento só nos pode elevar a patamares mais altos da nossa existência. Deve, por isso, ser celebrada como um bem único e protegida como tal, por todos os meios, e em todos os momentos da vida de todas as pessoas.

Segundo estabelece a psicologia, a identidade de género define-se muito cedo, tanto para as pessoas transgénero (ou trans – identidade de género desconforme com a atribuída à nascença) como para as cisgénero (ou cis – identidade de género conforme com a atribuída à nascença). No entanto, como refere uma mãe de uma criança trans de sete anos de idade, “só as primeiras crescem procurando ansiosamente modelos, linguagens e até estratégias para exprimirem a sua identidade em segurança. Só as primeiras crescem temendo a reação da população adulta à sua identidade, assim como do ambiente social em geral. Às segundas basta tão só viver”.

Quando os ambientes familiares e as pessoas afetivamente próximas dessas crianças trans reconhecem, muitas vezes precocemente, e cada vez mais cedo, essa dimensão única e transcendente da sua liberdade individual, estas afirmam-na naturalmente nos espaços protegidos e livres das suas casas, nos ambientes de amor das suas famílias alargadas, transitando do género atribuído ao género sentido (do masculino ao feminino ou vice-versa). São transições sem diagnóstico nem papéis, são processos de crescimento das crianças e das suas famílias.

Mas “lá fora” o Estado, e o seu enquadramento legal, que as devia proteger, nega-lhes essa liberdade de identidade. São crianças-sem-documentos que as validem, na escola, em situações de saúde, em todas as suas atividades-de-crianças que impliquem serem identificadas, e até mesmo enquadradas, por distinções de género (binárias). São crianças permanentemente em luta, e com elas as suas famílias que temem pela sua integridade, porque cada vez que apresentam os seus documentos não conformes com a sua verdade, expõem sobretudo a sua intimidade e, ao fazê-lo, correm os riscos inerentes a essa exposição.

A autodeterminação de género, sendo um direito fundamental, deverá, por isso, estar para além de quaisquer entraves impostos pelo legislador. Ao criar entraves (sejam estes etários, médicos, jurídicos ou outros), o legislador reforça a situação de exclusão social destas pessoas, bloqueando-lhes a infância e adiando-lhes indefinidamente a vida, ou bloqueando o que resta da vida de pessoas adultas que permanecem indefinidamente na “sala de espera” de validações médicas abusivas e absurdas.

A responsabilidade do legislador que ergue muros administrativos separando, quanto ao exercício da liberdade de expressão de identidade, pessoas trans de pessoas cis, ficando as segundas do lado da liberdade e as primeiras do lado da sua privação, está por isso estreitamente ligada ao sofrimento que gera.

O legislador tem agora a oportunidade e a responsabilidade de corrigir uma situação de injustiça de uma sociedade inteira e, num sentido mais lato, contribuir para avanços fundamentais da experiência humana.

[1] Usillos, Andrés Gutiérrez (coord.). 2017. Trans* Diversidad de identidades y roles de género. Ministerio de Educación, Cultura y Deporte. Museo de América. Tradução livre da autora

A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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