A tragicomédia da Cultura em três actos

Salvos os vencedores, fica no cais o peixe miúdo, teimoso e valente a bater-se pela sobrevivência.

“Os honrados são pobres, os ricos vilãos ruins, concertai-me esta geringonça”
Comedia Eufrosina, Jorge Ferreira de Vasconcelos, 1555

Ano após ano, os resultados dos concursos da Direcção-Geral das Artes são contestados e seria penoso oferecer à leitura em breves linhas as múltiplas razões de tão emaranhado enredo. Falemos desta tragicomédia.

I ACTO – O orçamento para a Cultura é insuficiente e injustamente distribuído. Uma constatação consensual que compromete a criação artística, fomenta a precariedade do trabalho e abandona à sua sorte grande parte de projectos que consubstanciam a cultura e a identidade portuguesas. O vilão está do lado do poder político. Os governos de direita parecem odiar a cultura e os de esquerda parecem ignorá-la, excepto quando querem fazer figura de gente “culta” no estrangeiro ou ganhar eleições. Este I acto é manifestamente lamentável.

II ACTO – A regulamentação dos concursos de apoio às artes é má e mal-usada. Invariavelmente, o Ministro da Cultura desculpa-se com o secretário de Estado, que por sua vez se desculpa com a DGArtes, que se desculpa com o júri, que muito escrupulosamente escolhe de entre centenas de candidaturas as mais pós-modernas, pós-alternativas e pós-emergentes. É claro que este grupo de “pretensos” especialistas “misteriosamente” arregimentados todos os anos para avaliar o trabalho de quem invariavelmente não conhecem (a menos que sejam amigos...) não se livram de serem mimoseados com acusações (injustas com certeza!) de fazerem parte de uma rede de indivíduos conectados e integrados num sistema de “aderência”, favorecimentos, descriminações, arbitrariedades, fuga de informações, fazendo dos concursos algo viciado e pouco transparente, etc... enfim, farpas que eles incorporam com toda a tranquilidade.

Aqui, a meio da peça há um desfecho anunciado: feliz para os vencedores do concurso pela sua muita qualidade e adequação, habitualmente sempre os mesmos, e amargo para os perdedores do concurso, que vêm os seus projectos entusiasticamente denegridos, e que habitualmente também costumam ser os mesmos, embora por vezes haja algumas surpresas, como é o caso deste ano.

Este desfecho espectacular cuja lógica é “quem apanhou, apanhou!”, como dizia o Eça, vai naturalmente produzir uma aceleração da acção dramática. Salvos os vencedores, fica no cais o peixe miúdo, teimoso e valente a bater-se pela sobrevivência, frente ao simulacro da “audiência prévia” que é de direito, mas que nunca convencerá quem não quer ser convencido. Vasculham-se candidaturas, digo papéis (e qualquer investigador sabe que o papel é o maior mentiroso, pois consente tudo o que lá se escreva) e começa o penoso trabalho de se perceber como o rei vai nu.

Nesta altura, o drama adensa-se e as fronteiras demarcam-se. Uns têm um milhão e meio de euros para a sua programação a quatro anos, enquanto outros tiveram zero. A classe artística agita-se contra a DGArtes porque não se promove um verdadeiro serviço público de cultura; contra o secretário de Estado, que se devia demitir, amareladamente protegido pelo seu regulamento mal enjorcado; contra o ministro regiamente alheado dos problemas graves do seu ministério. Os fazedores da cultura portuguesa também se insurgem indignados contra mais um abuso das instituições, eivada de pretensos iluminados que com a sua ditadura do gosto têm decapitado ao longo da nossa história recente a diversidade da nossa herança cultural e criação artística. Este acto é longo e espinhoso.

III ACTO – Neste breve e último acto a acção dramática adensa-se. Adivinha-se quem vai perder. Dizia Garrett: “Ah, mundo enganador, mundo enganador!...”

E só há cansaço e enjoo num país onde parece não haver espaço para os nossos grandes dramaturgos, clássicos e contemporâneos; e só há desgosto pela aparente impotência em desmontar uma teia de interesses e conluios; e só há perplexidade de ainda insistirmos em ser politicamente correctos e optarmos pela autocensura quando a política, a mais nobre das actividades humanas, deveria ser a de governar em prol dos cidadãos e do bem comum.

EPÍLOGO – Este é o lugar em que a autora se despede, não sem deixar uma pequena interpelação aos governantes: é assim que se comemora em Portugal o Ano Europeu do Património Cultural?

Acabo aqui porque se me acabou o papel, e como dizia o poeta dramaturgo Sá de Miranda “O Sol é grande” e, dizemos nós, “a DGArtes é pequena”.

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