Quebrar o eterno retorno

A mentalidade geral continua a não olhar para as mulheres como indivíduos

Tenho o privilégio de viver numa época em que vi e senti o desenrolar de várias revoluções, desde políticas, como o 25 de Abril, até civilizacionais, como a de reconhecimento de direitos individuais. Esta beneficiou de forma radical a vida das mulheres e o seu papel social e foi possível com a individualização de papéis sociais, conceptualizada por Zigmunt Bauman como o nascimento da “sociedade líquida” e também explicada pelo reconhecimento da diversidade em Judith Butler. Nessa evolução, teve papel determinante a luta dos feminismos, mesmo quando não se consideram como tal. E provocou, por seu lado, transformações no próprio feminismo. Nomeadamente pela afirmação do movimento queer a partir do final dos anos 80 do século XX.

O respeito pelos direitos das mulheres, como por todos os direitos humanos, é hoje um princípio e um valor estruturante das democracias. Prova disso foram as celebrações do Dia da Mulher em Portugal, a nível institucional, na sociedade civil e na comunicação social. Podemos dizer que os feminismos chegaram ao mainstream. Fizeram-no mesmo em todas as correntes ideológicas, as quais, todas elas, têm hoje um discurso sobre os direitos das mulheres. Mesmo que seja para defender o direito das mulheres a ficarem em casa, terem filhos e criá-los, o que de facto pode ser visto como um direito, se for uma escolha assumida pela própria em consciência.

Os movimentos de luta por direitos individuais das mulheres em interacção com o seu reconhecimento legal pelos Estados tornaram o tema um assunto que domina o mainstream. Como se hoje fosse quase uma vergonha negar os direitos das mulheres, pelo menos alguns deles. Passaram mesmo a ser um produto da sociedade de consumo.

A questão é saber o que são hoje direitos das mulheres, quando o mundo muda a uma velocidade voraz, quando os conceitos de trabalho e de produção evoluem para formas ainda desconhecidas. Faz sentido falar em direitos das mulheres ou tão-só em direitos individuais, em direitos das pessoas? O que são hoje os direitos das mulheres? Paridade política, igualdade salarial ou carreira são problemas de um velho mundo? Num país como Portugal, não estão resolvidos do ponto de vista prático. Estarão ultrapassados do ponto de vista teórico? Será que a admissão ao nível discursivo — nem que seja por vergonha — do direito das mulheres enquanto indivíduos a ter direitos é suficiente para que a prazo e no concreto sejam adquiridos? Será que o iluminista conceito de progresso é verdadeiro?

Temo que não, pois creio que todos os direitos humanos — e friso todos — não estão resolvidos. Mais. Considero que todos os direitos humanos, todos os direitos das pessoas são frágeis. Enquanto temas estruturantes das democracias, tal como as conceptualizamos hoje, os direitos adquiridos pelas mulheres são frágeis e podem regredir. Não um linear regresso ao passado, mas uma evolução para sistemas sociais autoritários, ainda que sob forma aparentemente democrática, como, aliás, já se ensaia em alguns países europeus em relação a alguns direitos humanos.

Não só porque estou convencida de que muito do que hoje são direitos adquiridos na lei podem deixar de o ser igualmente por lei. Mas também porque a mentalidade geral das sociedades ocidentais e democráticas — aquelas em que há maior reconhecimento de direitos individuais — continua a não olhar para as mulheres como indivíduos. As nossas sociedades continuam a ver as mulheres como mães, em função da sua inserção na família e como pilar estruturante desta.

Não nego a diferença biológica e a capacidade de gerar um feto que as mulheres — ou a maioria das mulheres — têm. A questão é que a condição biológica — que é real e inegável — continua a ser vista como determinante e condicionante do reconhecimento de direitos às mulheres. E este tem surgido sempre sob a forma de um eterno retorno, ainda que modernizado e actualizado, ao mito do papel natural de mãe. Será que nas revoluções a que a minha vida me dá o privilégio de viver ainda verei quebrar o eterno retorno ao conceito de mulher/mãe?

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