Solaris: não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos

Quase 60 anos depois da edição original (1961), Solaris, de Stanislaw Lem, é, finalmente, publicado entre nós: pela primeira vez, numa tradução directamente feita do polaco.

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Binder/ullstein bild via Getty Images

Este Solaris, que a Antígona acaba de lançar, é uma tradução que tem em conta as especificidades assinaladas pela sua tradutora, Teresa Fernandes Swiatkiewicz, na nota à edição, a saber: a fidelidade a um estilo situável “entre uma linguagem técnica, filosófica e poética” (p.10), mas também a manutenção de um registo em que “não existem, por exemplo, ‘robôs’, nem ‘computadores’, mas ‘autómatos’ e ‘cérebros electrónicos’” (p.11). Finalmente — e, porventura, mais importantemente —, esta nova tradução “preservou elementos do acervo idiomático polaco” (p.12), em diversas passagens que retêm o espírito, mas também a letra, da linguagem original — “letras tão miudinhas que pareciam sementes de papoila” (p.218) — e que fazem das suas expressões idiomáticas uma superfície de dupla face a unir língua de partida e de chegada.

O romance de Lem imagina, num futuro mais ou menos impreciso, “um vizinho a biliões de quilómetros de vácuo e a uma distância de anos-luz, atravessado no seu caminho de expansão, mais difícil de abarcar e mais perturbador do que o resto do Universo” (p.224). Este planeta de superfície “gelatinosa” (p.36) é Solaris, corpo celeste “quase todo coberto por um oceano e por uns quantos planaltos que se erguiam acima do nível do oceano” (p.34). Esta vasta massa misteriosa é descrita pelos cientistas, os “solaristas”, como “monstro pensante, uma espécie de oceano-cérebro protoplasmático que se expandira desmedidamente e envolvia todo o planeta” (p.40).

Kris Kelvin, o psicólogo que protagoniza o romance (se a personagem central não é mesmo o próprio planeta) demora “dezasseis meses” (p.64) a chegar à Estação. Orbitando esta em torno do misterioso planeta, é concreta e figurativamente atraída pela sua força gravitacional, mas também a compele o túrpido fascínio sentido por uma tripulação reduzida a dois elementos: Snaut e Sartorius. É por acção de Solaris que Kelvin irá receber a visita de um simulacro da sua mulher, Harey, morta dez anos antes. Trata-se, porém, de “uma Harey simplificada” (p.84), em tudo semelhante à desaparecida, mas apenas sua “forma geral” (p.110). O romance demorará a definir até que ponto é ou não humana esta réplica da verdadeira mulher de Kelvin. O paradoxo desta humanidade alternativa, compassiva e amante, mas evanescente e imprecisa, com poucos dados concretos a que se agarre, constitui um dos pontos mais dramáticos de todo o romance. E um que torna especialmente terrível as sucessivas tentativas de a destruir, até à definitiva “aniquilação” (p.247). A questão ficará a pairar até ao fim — “Poucos seres humanos verdadeiros seriam apazes de fazer o que ela fez…” (p.201) Harey, ou o últimos dos seus simulacros criados por Solaris, a partir dos pensamentos de Kelvin — segundo uma das teorias desenvolvidas pelos estudiosos —, submete-se ao sacrifício de ser o veículo de uma experiência que pretendia aniquilar o enigmático oceano de Solaris. O romance nunca deixará de ser uma interrogação, até ao fim. Uma das mais cortantes manifestações desse teor inquisitivo surge numa recordação do passado de Kelvin. Numa visita de estudo ao Instituto Solarístico onde o jovem psicólogo trabalhava, uma aluna em plena actividade escolar deixa cair a bomba, sob a forma da mais arrasadora pergunta: “E para quê tudo isso?” É essa a pergunta que inquieta todo o romance de Lem. Ou algumas declinações que ela poderá motivar. Qual o propósito do conhecimento e da ciência, do esforço exploratório do cosmo, do dispêndio e da dissipação de energia e de vidas? Tendo em conta o desfecho desenganado e disfórico do romance, em que um Kelvin reflecte a sós sobre a vacuidade de todas as afeições, sobre o sem-sentido da trajectória humana, deve ser esse o sentido das enigmáticas palavras de Snaut — “Não precisamos de outros mundos. Precisamos de espelhos.” (p.101) Toda a exploração é fútil, todo o esforço é vão, porque no fim a humanidade espreita-se a si mesma em todos os seus empreendimentos. Afina, é de “milagres cruéis” (p.265) que fala a última frase do romance.

Como é sabido, houve duas adaptações cinematográficas do romance de Stanislaw Lem, a de Andrei Tarkovsky (1972) e a de Steven Soderbergh (2002). Existe ainda um telefime de produção soviética, datado de 1968, mas sem grandes ambições estéticas — e cujo mérito maior poderá ser a fidelidade ao original de Lem. O filme de Tarkovsky é um objecto muito diferente da adaptação que se havia de seguir, trinta anos depois. Se ambas as películas contrariam o romance, fornecendo um preâmbulo passado na Terra — o romance arranca já em pleno espaço —, as semelhanças ficarão, muito provavelmente, por aí. Onde Tarkovsky é subsumido, contido, esquivo, como se segredasse ou não quisesse revelar, Soderbergh só muito parcialmente mantém o enigma do romance de Lem. Tarkovsky desvela a custo, Soderbergh “explica”, mesmo quando mantém, ou tenta manter, o mistério. Por exemplo, Tarkovsky situa Kelvin no planeta Terra, mas não introduz a narração do encontro com Harey (Rheya, em Soderberg), nem o envolvimento entre o casal. Tão-pouco “explica” o suicídio de Harey

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Adaptações ao cinema do romance de Stanislaw Lem: Tarkovsky (1972) e Soderbergh (2002)
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Rheya, para o qual o realizador norte-americano fornece uma causa evidente: um aborto provocado por Rheya com desconhecimento de Kelvin, o qual, ao opor-se violentamente à decisão da mulher, acaba por ser o causador do suicídio. Explicação adicional se seguirá: o destino de aniquilação de Harey/Rheya é um prolongamento da reacção inicial de Kelvin e da sua percepção de todo o episódio da perda voluntária do bebé. Tarkovsky opta por um caminho totalmente distinto. Kelvin começa junto ao pai e é a ele, e à sua casa, que retorna no fim do filme. Algo que pode ser um sinal de fidelidade — ou de interpelação distorcedora — ao texto do romance de Lem, em cujo último parágrafo é possível ler: “Teremos então de admitir que revivemos tormentos antigos, que, quanto mais profundos, mais a sua repetição os torna cómicos. Que a existência humana se repita, está bem, mas repeti-la tal como um bêbedo repete sempre a mesma canção da moda, introduzindo moedinhas na máquina da música?” (p.265) De resto, o Solaris de Tarkovsky replicará em mais um pormenor essa construção circular. A primeira sequência do filme capta uma paisagem lacustre na qual a vegetação ora se submerge, ora emerge das águas. E é também um exemplar de vegetação o último elemento vital que Kelvin observa antes de abandonar a Estação e cruzar a impressionante barreira de nuvens — o romance de Lem fala, noutro ponto, de uma “parede de nevoeiro” (p.108) — que o leva de volta à casa paterna. Claro está que o realizador russo baralhou os dados, agitando o que se preparava para ser demasiado liso. O plano final do filme, que se transforma em grande plano distante, concebe a casa numa ilha que flutua em Solaris. Porque nada pode deixar de ser repetição do vivido? Porque, naquele regresso, nada é “real”, mas emana do oceano gelatinoso de Solaris? Nunca o saberemos, porque este cinema não pretende responder, mas perguntar, inquietar.

Tarkovsky parece ter lutado contra o género fílmico que “formalmente” adoptou: a ficção científica, de que não gostaria. Tanto quanto podemos perceber, o realizador repudiava os elementos dessa gramática. Nos seus diários, por exemplo, anota: “Aqueles malditos corredores, laboratórios, salas com instrumentos.” Não só devido aos constrangimentos da burocracia e da censura soviética, mas também por causa dos limites auto-impostos do género, regista: “A filmagem é muito difícil. Muito, muito difícil. Fazer [Andrei] Rubliov foi uma brincadeira, comparado com isto. O que estamos a fazer agora é absolutamente estonteante”. Outro aspecto que — independentemente das três décadas que medeiam entre ambos — separa os filmes de Tarkovsky e Soderbergh. Onde este acolhe na arquitectura do filme a tecnologia e o progresso, a modernidade e o futurismo, Tarkovsky optou por soluções mais pedestres, ditadas pelas circunstâncias, mas porventura pelo pouco apego que o realizador tinha pela tecnologia. Para “simular” a modernidade, Tarkovsky filma, quase no início do filme, uma longa sequência na qual sucessivos túneis auto-estradas se contrabalançam com um suporte sonoro que cria uma atmosfera tensa de antecipação. (O realizador pretendera filmar as cenas “futurísticas” no Japão, mas viu-se impedido de o fazer por um atraso nas autorizações, que chegaram tarde de mais.) De resto, esta abordagem de Tarkovsky volta a remeter para o texto de Lem: “Pensei nas grandes cidades superpovoadas e barulhentas, onde me perderia e deitaria tudo a perder” (p.254). Como é óbvio, o filme de Soderbergh, por seu turno, recria uma cidade futurista, com utensílios correspondentes e todos os sinais de um tempo mais ou menos distante, mas que poderia pertencer a qualquer filme do género. Tarkovsky limita essa sugestão a um caminho que desemboca num denso emaranhado de autovias que se entrecruzam num caos de luzes e trânsito.

Há, por outro lado, aspectos que se perderam na adaptação de Soderbergh, e que o filme de Tarkovsky mantém. É o caso da sequência do vestido de Harey, sem abertura, nem fecho, que Kelvin tem de cortar para a sua mulher-réplica se despir. Esta peça de roupa, que tem de se retirar, para assumir a camada mais natural e asséptica de uma roupagem adequada para a Estação orbital, é uma metáfora eficaz para a pele que Harey tem de mudar, e que recobrirá com uma nova a cada abate e ressurreição. Mais um ponto em que Tarkovsky seguiu Lem: “não era capaz de se despir, porque o vestido não tinha abertura. Os botões vermelhos no meio eram apenas um enfeite. O vestido também não tinha um fecho-éclair ou outro qualquer.” (p.89) Um dos aspectos “plásticos” em que o filme de Tarkovsky mais se aproxima de Lem é a cor. O romance do escritor polaco é uma orgia cromática, em que as colorações e cambiantes são descritas com uma precisão luxuosa mas de enormes ressonâncias retóricas — “Através da janela descoberta, vislumbrei os primeiros raios do sol vermelho, cuja luminosidade agigantada traçava um rio de fogo purpúreo na superfície do oceano, e constatei que aquela imensidão até aí inerte desatava a agitar-se. A sua negrura começou a empalidecer, como se fosse coberta por uma fina camada de nevoeiro” (p.235). A película do realizador russo optou, por exemplo, por oscilações subtis e não taxativas entre a cor e o preto e branco. Sobretudo, fez o filme dialogar com a pintura, nomeadamente com Caçadores na Neve, de Brueghel. Uma presença que lhe permite fazer a transição para paisagens nevadas que ambientam recordações de infância de Kelvin — além de introduzir a impressiva notação do branco.

O poeta Arseni Tarkovsky, pai do realizador, caracterizava Solaris, “não como um filme, mas como algo afim da literatura”, revela Andrei Tarkovsky nos seus diários. “Por causa do ritmo interno, autoral, da ausência de artifícios banais e da enorme quantidade de pormenores que cada um com a sua função específica na narrativa.”

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