As cidades distritais inteligentes: em nome de um federalismo autárquico de 2.º grau

Apesar da sua morte anunciada, os distritos ainda moram no nosso subconsciente coletivo. A revolução digital em curso pode ser o renascimento desses territórios.

Os territórios digitais são uma espécie de novo emblema das políticas do território. Vale a pena, por isso, fazer um esforço analítico no sentido de perceber melhor em que consiste e o que está em jogo quando se fala de territórios digitais e digitalização territorial. O conceito de “cidade distrital inteligente” procura responder a esse esforço analítico que contempla, por um lado, a definição de um “governo dos comuns” e, por outro, a conceção e construção de um “centro partilhado de recursos digitais”.

Em contraponto ao negócio digital que irá inundar a sociedade portuguesa em todas as suas áreas de atividade, a digitalização de um território precisa de um centro dotado de um mínimo de racionalidade global que evite a cacofonia e o ruído de fundo. Quer dizer, precisamos de uma estrutura de autogoverno dotada com um mínimo de população, atribuições, competências e meios, que seja capaz de articular os poderes setoriais e intermunicipais com as expetativas das populações expressas através de recursos digitais e suscitar os efeitos de aglomeração e escala que o território mais necessita. A “cidade distrital inteligente” seria o ator-rede que, para tal, criaria uma espécie de “ordem local”.

Imagine-se, por exemplo, o distrito de Beja, com 14 concelhos e 153 mil habitantes segundo o censo de 2011. De acordo com o conceito de “cidade distrital inteligente”, seria constituída uma “plataforma de cidadania interativa” com o propósito de selecionar os “bens comuns distritais” que deveriam ser colocados ao serviço de toda a população do distrito, uma cidade-rede com 153 mil habitantes. De acordo com este novo elenco de prioridades, a “comunidade de autogoverno distrital” debateria a natureza, os conteúdos e os limites do “centro partilhado de recursos digitais”, tendo em vista apetrechar o distrito com as “infraestruturas de conexão” que viabilizam os novos serviços digitais, assim como o modelo operacional e logístico que colocaria os bens comuns ao serviço da população do distrito.

Creio mesmo que este centro de racionalidade territorial que aqui designamos como “cidade distrital inteligente” (que, apesar de tudo, julgo mais apropriado que uma CIM inteligente) deveria preceder a vaga do negócio digital, pela simples razão de que essa precedência daria outra consistência às inúmeras aplicações tecnológicas e digitais que inundarão o mercado e os territórios. Ora, é certo e seguro que a transformação dos territórios não se compadece com a velocidade do negócio digital e dentro em pouco todos estaríamos a lamentar a ligeireza e a leviandade do propósito.

As “cidades distritais inteligentes” do interior de Portugal teriam uma dimensão média mais elevada, recriariam o seu hinterland, e essa circunstância seria uma oportunidade única de colocar à sua disposição serviços comuns com uma eficácia e eficiência muito superiores. Mas este propósito, expresso desta forma simples, é uma autêntica revolução num sub-região como o distrito. Por várias razões.

Em primeiro lugar, seria uma revolução na gestão municipal e intermunicipal em direção ao federalismo autárquico de 2.º grau, o que implicaria, desde logo, uma alteração substancial na orgânica interna dos municípios no que diz respeito à relação back office versus front office e à estrutura de qualificações do pessoal técnico das autarquias.

Em segundo lugar, seria necessário combater em toda a linha a iliteracia digital em todas as faixas etárias, o que implicaria, igualmente, uma reforma profunda nos programas escolares e na organização do edifício escolar intermunicipal na sua plenitude.

Em terceiro lugar, a digitalização da “cidade distrital inteligente” necessitaria de uma política muito mais substancial de descentralização político-administrativa, pois estariam criadas condições para uma gestão mais eficiente de recursos escassos no plano distrital.

Em quarto lugar, o distrito, nesta aceção digital, teria de voltar a ser um “território-desejado”, uma cidade-rede para o século XXI, muito próxima das populações e colocando à sua disposição uma série de bens e serviços comuns, fixos e ambulatórios, que, de outro modo, não seria possível.

Em quinto lugar, para ser mais do que um simples “território esperto” necessitaria de novos espaços de liberdade onde exercitar a inteligência, a imaginação e a partilha de conhecimentos; por exemplo, os espaços colaborativos de coworking apresentam estruturas muito variáveis, permitem os primeiros passos aos futuros empreendedores e são, também, um laboratório experimental onde começam a tomar corpo novos formatos de inteligência coletiva territorial.

Em sexto lugar, a “cidade distrital inteligente” (os 14 concelhos do distrito de Beja), para lá das novas “utilities distritais”, estaria obrigada a criar uma “nova escola industrial” para o século XXI, uma “escola de negócios digitais” em íntima colaboração com as associações empresariais e as outras escolas do distrito.

Em sétimo lugar, e porque não há fronteiras distritais, a “cidade distrital inteligente” teria de criar os seus “signos distintivos territoriais”, uma iconografia apropriada à sua nova imagem e condição, isto é, teria de ser uma cidade não apenas esperta, mas, sobretudo, inteligente e criativa.

Em oitavo lugar, e em posição muito destacada, a “cidade distrital inteligente” teria de cuidar da sua responsabilidade social, pois o risco de exclusão digital é muito elevado numa fase mais ou menos longa de transição; todavia, este é um campo onde o “sistema previdencial” da cidade inteligente poderia ser extraordinariamente inovador, com soluções de grande proximidade aos utentes dos diversos subsistemas de segurança social.

Em nono lugar, e também em posição destacada, a “cidade distrital inteligente” poderia ser muita inovadora no que diz respeito às relações de trabalho com a adopção de várias modalidades de “economia e relações colaborativas interpares”; quer dizer, na posse de um banco de dados sobre relações de trabalho, a cidade inteligente poderia apresentar soluções muito criativas e interessantes de mobilidade geográfica e profissional para aplicar no interior do distrito e em distritos vizinhos.

Finalmente, e apesar da sua morte político-administrativa há muito anunciada, o distrito teria aqui uma segunda oportunidade, desta vez sob a forma inovadora de uma cidade-rede inteligente e de proximidade.

Nota Final

Com efeito, prova-se à evidência que um território não se pode limitar a sobreviver como mera unidade estatístico-administrativa, do tipo NUTS II ou NUTS III ou, mesmo, CIM. Nunca será verdadeiramente um território inteligente e criativo, pois terá sempre uma baixa intensidade-rede e uma fraca sociabilidade. Por outro lado, apesar da sua morte anunciada, os distritos ainda moram no nosso subconsciente coletivo. A revolução digital em curso pode ser o renascimento desses territórios, desta vez sob a forma de “ecossistemas inteligentes de acolhimento”, as nossas cidades-rede inteligentes e criativas do século XXI. A terminar, é bom não esquecer que os distritos são circunscrições eleitorais, é lá que elegemos os nossos deputados e que, nessa condição, eles estão “obrigados” a realizar constantemente um exercício de inteligibilidade do território que representam. E porque não refrescar a sua representatividade política através desta inovação digital, a cidade-rede distrital inteligente?

Finalmente, e talvez mais importante, as “cidades distritais inteligentes” formariam uma grande via arterial no interior do país, isto é, a coluna vertebral de que o país tanto necessitaria para equilibrar os excessos de localismo e centralismo, os dois excessos endémicos que explicam os desequilíbrios territoriais do país.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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