Maria Lassnig e a casa-corpo em que ela vivia

Os desenhos de Maria Lassnig, a mais importante pintora austríaca do século XX, acabam de chegar à Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva. Revelam uma obsessão: a da artista com a sua própria imagem.

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A exposição de Maria Lassnig no Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva Sebastião Almeida
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A exposição de Maria Lassnig no Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva Sebastião Almeida
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A exposição de Maria Lassnig no Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva Sebastião Almeida
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A exposição de Maria Lassnig no Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva Sebastião Almeida
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A exposição de Maria Lassnig no Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva
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A exposição de Maria Lassnig no Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva Sebastião Almeida
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Maria Lassnig morreu em 2011 aos 94 anos drBettina Flitner
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Duplo auto-retrato impiedoso (1999), lápis e acrílico sobre papel dr
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Sem título (Mulher a gritar) (1981), lápis e aguarela sobre papel dr

Diz uma das frases coladas nas paredes da Fundação Arpad Szènes - Vieira da Silva (FASVS) que, quando se cansou de representar analiticamente a natureza, Maria Lassnig procurou “a mais verdadeira e clara das realidades”. Encontrou-a na “casa-corpo em que vivia”. E esta afirmação condensa bem aquilo que hoje podemos ver da obra desta extraordinária pintora, falecida em 2011 aos 94 anos.

A obra de Maria Lassnig chega à FASVS como tantas outras exposições têm tido aqui lugar: através de um possível contacto geracional, estilístico ou formal com o casal de pintores que dá nome à fundação. No dia em que visitámos a exposição, a curadora, Johanna Ortner, contou que havia provas de que a pintora austríaca teria visitado uma exposição de Vieira. Nos anos 60, então a viver em Paris, Lassnig escreveu uma crítica de arte sobre uma individual da pintora portuguesa, e publicou-a num jornal austríaco. Esta informação permite eventualmente explorar ligações entre o trabalho das duas pintoras, embora elas sejam sobretudo, e disso não há dúvida, geracionais e sociológicas. Tudo o mais as separa.

Tal como Vieira da Silva no caso português, Maria Lassnig é hoje a justo título considerada uma das mais importantes, senão mesmo a mais importante pintora austríaca de todo o século XX. Nascida em 1919 numa pequena aldeia austríaca – e por isso um pouco mais nova que Vieira -, Lassnig viveu toda a vida para a arte, sacrificando-lhe mesmo a sua vida privada. “Ela vivia para a pintura e o desenho. Sabemos que teve relações, das quais uma, muito importante, com o pintor Arnulf Rainer. Mas nunca casou”, afirma o director da Fundação Maria Lassnig de Viena, Peter Pakesch. “Nos últimos anos de vida tinha muitos amigos em Viena que a visitavam frequentemente, e por isso também nunca esteve realmente só”. Talvez esta opção de vida ajude a compreender a relação muito particular da artista com a sua auto-representação – o grande tema de toda a sua obra -, do mesmo modo que não conseguimos hoje imaginar o que seria a obra de Vieira da Silva sem a relação fusional e apaixonada que manteve sempre com o marido, Arpad Szènes.

A exposição, intitulada Ver não é tão importante como sentir, construiu-se a partir da colecção da própria Fundação Maria Lassnig, e tem outras duas declinações, uma no Albertina Museum de Viena, e outra no Kunstmuseum de Basileia. Em Portugal estão cerca de 50 peças sobre papel, entre desenhos e aguarelas, bem como um filme de animação, disciplina que interessava tanto a pintora que esta chegou a aprendê-la na década de 70. A montagem optou por aproximações e contrastes formais, ou mesmo pelo destaque dado a alguns núcleos, mas foge sistematicamente, e bem, de uma visão cronológica. Por essa razão, o começo da exposição resume de certa forma aquilo que vamos ver: dois desenhos de traço surrealizante, evocando um longínquo Picabia, por exemplo, lado a lado com obras de infância, e com dois magníficos arabescos abstractos. Entre os primeiros e os últimos, distam apenas dois anos, os que medeiam entre 49 e 51.

Antes destes, está todo um período de aprendizagem académica que Maria Lassnig faz durante o período da 2ª guerra mundial. Na época, conta-nos Pakesch, a Áustria era um país isolado e provinciano. Em 1945, a geração brilhante de artistas e escritores que tinha feito a glória da cultua austríaca no período entre as duas guerras tinha ou emigrado, ou morrido. A artista percebe rapidamente que não é esse meio provinciano que lhe vai fornecer o alimento necessário para criar. Ao mesmo tempo concentra-se na auto-representação como objecto quase exclusivo do seu trabalho, enquanto se abre a influências dos estilos e movimentos do seu tempo. Para além do surrealismo, já citado, encontramos referências ao cubismo, à abstracção e, claro, visto que estamos na Europa Central, ao expressionismo.

A instrospecção e a “consciência do corpo”, o nome que a artista dava ao seu processo de trabalho, tornam-se nos meios processuais através dos quais realiza a sua obra, e isto desde muito cedo. Lassnig considera que, mais do que ver, é necessário sentir, experimentar factos tão simples como a dor, a vergonha, a alegria, o júbilo. Em 1960 vai para Paris, onde reside até 69; e aqui abandona por completo a sujeição a estilos e normas, entendendo que é na capital francesa que é possível sentir a liberdade que lhe falta em Viena. Nesta altura, muda de estilo ao sabor do estado de consciência. Não tem medo de se desenhar feia, incompleta, fragmentada. Não tem medo, sequer, de pintar a família – o pai ou a mãe – igualmente feios, com aguarelas onde a cor se sujeita a uma teoria das emoções, tal como muitos anos antes Kandinsky ou Paul Klee tinham tentado definir, cada um à sua maneira. Estuda muito, ganha muito pouco, vive com grandes dificuldades. Mas dá-se com as elites artísticas parisienses, porque sabe que, para criar, é preciso ver, discutir e pensar.

Para Maria Lassnig, desenhar está mais próximo do sentimento do que pintar. Diz ela que “o desenho está mais próximo da ideia; o desenho está mais próximo do momento. Cada instante tem apenas uma possibilidade”, possibilidade essa de apreensão que é tanto do domínio da ciência quanto da intuição. Numa das salas desta exposição, há duas aguarelas compostas por fragmentos numerados, como desenhos científicos ou itens de um catálogo. Trata-se, segundo a arista, de possibilidades de apreensão do real pelo corpo que não incluem o olho. A semelhança com certas pinturas de Bacon, e até, subindo mais longe, com Velásquez (que também inspirou Bacon) é marcante, algo que a pintora decerto não renegaria. Estas obras, autênticos auto-retratos cegos, traduzem essa vontade sem fim de se conhecer através do sentimento, tanto como do conhecimento científico. Numa outra frase retirada dos seus diários, Lassnig afirma que “a arte desenvolve-se através de bolhas de sabão rebentadas, de corações engelhados, do cerebelo espião.”

No final da década de 70 Maria Lassnig parte para Nova Iorque. Onde residirá, com alguns intervalos, até aos anos 80. Aqui, familiariza-se com as teorias feministas, e também com o mundo dos meios de comunicação e a avalanche de imagens que produzem a toda a hora. Um núcleo de desenhos a lápis data desta época, onde o corpo aparece fragmentado (torsos sem cabeça, braços sem corpos, pernas sem bustos), algo a que a montagem televisiva e a sucessão ininterrupta de imagens díspares proporcionada por essa técnica não serão alheias. Pakesch associa esta imagem do corpo às teorias de Lacan; na realidade, desde o início do século, mesmo desde Freud que a antiga unidade psíquica do ser humano é completamente posta em causa.

As peças mais recentes da exposição, datadas de quando já ultrapassara os 90 anos de idade, são obviamente das mais surpreendentes que aqui encontramos. Elas revelam uma vontade, ou melhor dizendo, uma necessidade de continuar a desenhar que se confunde com o próprio sopro vital. E, se em toda a sua obra se revelava também, e além de tudo o mais, um gosto pelo humor – os títulos são frequentemente surpreendentes sob este ponto de vista – ele aqui manifesta-se em pormenores que é necessário ver com atenção: numa data alterada para muitos milhares de anos, num monte informe cheio de pelos que supostamente é um auto-retrato, Maria Lassnig nunca perde a lucidez, intelectual e sensorial, que a caracterizou sempre.

Esta exposição não terá a contrapartida de uma apresentação do trabalho de Maria Helena Vieira da Silva na Áustria.

 

 

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