A literatura exilada

Há dias, encontrei na livraria francesa de Lisboa um livro português. Ou melhor: a tradução portuguesa de um livro de um escritor americano: o livro chama-se Central Europa (título original: Europe Central), o seu autor chama-se William T. Vollmann e foi traduzido em português por Manuel João Neto e a editora é uma “sociedade unipessoal” chamada 7 Nós, que já tinha editado um livro de contos do escritor e outras raridades. Tudo aqui é estranho e, ao mesmo tempo, muito eloquente: uma pequena editora, que se apesenta como “sociedade unipessoal”, edita um livro precioso e inclassificável (ficção, historiografia, romance histórico, sucessão de histórias que se situam na Alemanha e na União Soviética durante a Segunda Guerra Mundial), de um grande escritor que desdenha olimpicamente dos modelos romanescos de uma literatura homogeneizada, fiel aos estereótipos do género, universal na sua menoridade. O autor da tradução portuguesa deste livro que tem mais de novecentas páginas é um nome que não conseguimos localizar em nenhum território publicamente conhecido da coisa literária. Que louco é este que investiu um bom pedaço de vida numa tarefa gigantesca e silenciosa, condenada a uma quase clandestinidade? A pergunta não é retórica: gostava de saber quem é e presumo que é um perdulário obsessivo, de paixões fortes por certos livros e muito imprudente. Presumo que tradutor e editora se juntaram num luxuoso “gasto gratuito”, uma espécie de potlach, como se diz das actividades heterológicas, como os rituais que não servem nenhuma economia da utilidade. E esta presunção encontra boas razões para se sustentar: o livro não se encontra nas livrarias onde devia ter sido distribuído, provavelmente porque tem dificuldade em caber nelas (e não é por ser um calhamaço de quase mil páginas), como muitos outros de variáveis dimensões e incerto alcance. Por razões que desconheço, encontrei-o numa livraria que o albergava excepcionalmente, onde ele falava uma língua estrangeira (mas não é numa língua estrangeira que — dizia Proust — são escritos os bons livros?).  Na ficha técnica é indicado o local de edição (Porto) e a data: Novembro de 2017. Pela data, podia figurar nas listas dos “balanços” do ano, mas estava fora da fila. Em boa verdade, nem se aproximou, não se inscreveu, ninguém deu por ele. E como poderia ele ser visto na cidade se estava exilado, numa livraria francesa? A circunstância real encontra aqui um óbvio significado histórico. Central Europa, a literatura no exílio: fica-lhe bem esta classificação, inscreve-o numa condição geral e consumada. Já não há nada a lamentar, já passou essa fase: é muito mais interessante pensar que há uma nova chance histórica que se abre. Em 1897 Karl Kraus escreveu um longo texto satírico que se chama “A Literatura Demolida”. Na metrópole moderna da Europa Central, na cidade imperial de Viena, estava iminente o desaparecimento do café Griensteidl, lugar de encontro dos escritores e intelectuais vienenses. Kraus, o demónio da cidade Potemkin, da cidade-cenário onde se dançava a valsa enquanto o Império entrava no crepúsculo, viu na demolição desse café uma alegoria da literatura demolida. Mais de um século depois, a vida da literatura continua a produzir barrocas alegorias, apocalipses alegres. Todas as idealizações históricas criadas em torno da Europa central tiveram um destino funesto. Central Europa, o livro de Vollmann, é uma viagem pela tragédia do século. Coube-lhe em sorte de ser aqui uma literatura exilada. Acho que na livraria francesa há ainda outro exemplar exilado.

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