As cores que Lisboa ainda não tem

Nos roteiros mundiais de street art, Lisboa não fica a dever nada a outras cidades como Londres, São Francisco, Berlim ou Sydney.

A oferta de percursos pedestres de street art em Lisboa é suficientemente variada para se poder afirmar categoricamente que tudo o que qualquer turista necessita para a conhecer é de disposição e de uns bons sapatos de passeio. No desvendar da cidade, pode apreciar galerias a céu aberto que colocam a capital nos roteiros mundiais de street art. Neste aspeto, Lisboa não fica a dever nada a outras cidades como Londres, São Francisco, Berlim ou Sydney. Como o investigador Ricardo Campos afirmou, os centros urbanos portugueses têm sido influenciados pelos graffiti de tradição norte--americana, com uma iconografia bastante forte e orientada para a cultura de massas, o que, no mundo atual globalizado, atenua diferenças nos graffiti entre cidades. A capital guarda igualmente a memória dos extensos murais que estimulavam o entusiasmo coletivo perante a mudança dos tempos, na esperança de futuros melhores, depois de 1974. Esses murais eram semelhantes a outros pintados pelas brigadas muralistas nas ruas de Santiago do Chile, durante a experiência chilena (1970-73). As diferenças entre esses murais e os atuais hall of fame não se esgotam numa maior variedade de técnicas utilizadas atualmente (stencil, colagens, tinta em spray, etc.).

Nessa altura, além de serem murais partidários, os seus slogans visavam uma intervenção cívica e sociopolítica. E se os murais partidários são pouco utilizados atualmente, a maioria da street art no centro urbano de Lisboa tanto expõe mensagens sociopolíticas, frequentemente higienizadas por consensos generalizados, como apela ao consumo. Os writers tanto poderão trabalhar para clientes particulares, como para empresas ou marcas. São as leis de mercado a funcionar. Os princípios estéticos imperam e a memória quer-se consensual e apolítica. E uma forma de não melindrar consensos é evitar explorar incómodos que memórias da história recente possam revelar.

A street art tem no seu cerne uma natureza interventiva, até porque, até à criação de legislação sobre graffiti, pintar ou grafitar murais, sem autorização prévia, era totalmente ilegal. A ousadia no ato que existia antes da regulação desapareceu, com vantagens acrescidas para o mediatismo e a estética urbana. Certo é que, durante os recentes anos da crise, os murais que denunciavam a subordinação do poder político português à vontade de Bruxelas reativaram a memória do legado dos murais políticos. Ainda não estão esquecidos o Pray for Portugal ou A Lei do mais Forte, murais pintados por Nomen, Slap, Kurtz, Exas e Lukas, nas Amoreiras, em 2012, citando apenas alguns exemplos. Contudo, e findo o período agudo da crise, a grande afluência de turistas determinou uma promoção de Lisboa como uma cidade moderna e luminosa. A efemeridade desta arte impõe uma rotatividade que afasta conteúdos que problematizam a construção de narrativas dominantes para longe. Apesar de Lisboa ser o centro do poder político, os tempos modernos têm determinado uma prevalência dos interesses económicos. São as leis do mercado que fazem girar a roda política e estimulam a constituição de um público consumidor, passivo de produtos culturais importantes num processo de despolitização da esfera pública. Nesse sentido, a construção da memória histórica conduziu a uma valorização de espaços, personalidades ou obras, lugares de memória que estão na base de um turismo de memória, para usar uma expressão de Enzo Traverso, e incentivado por conveniências políticas.

A street art reflete os usos públicos que se fazem da memória, pondo a descoberto modos de fazer memória coletiva e uma leitura que articula a memorialização do passado através da street art e os locais onde esta se encontra convida a algumas reflexões. A street art que se encontra na cidade de Lisboa reflete uma memória que se tem centrado menos na problematização do passado do que na sua sacralização. Exemplo disso são murais, como os que celebram os Lusíadas de Camões, dos Arm Collective (2013), o Fado Vadio por um coletivo (2016), Amália, do Mr Dheo (2016), e Fernando Pessoa, de Odeith (2016), e que têm resistido à efemeridade própria desta arte. Resiste também o passeio literário, dos Ebano Collective (2014), exercício de topolatria, que evoca as ligações de vultos literários femininos, tais como Natália Correia e Sophia de Mello Breyner, entre outras, ao espaço da Graça. As referências à história mais recente são escassas no centro da cidade. Com exceções feitas ao mural sobre a Revolução de Abril, pintado no muro da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, e a outro que reproduz a imagem de um antigo mural do MRPP na Travessa dos Fiéis de Deus, os painéis pintados sobre a Revolução, na Calçada da Glória, que constituíam a exposição Venham mais Sete, organizada pela Galeria de Arte Urbana de Lisboa, em 2014, foram substituídos por outros, sendo um dos locais concessionados pela câmara para a street art; o conjunto de murais no Elevador do Lavra pintados na mesma altura foram igualmente apagados; e os murais em Alcântara, pintados no âmbito da iniciativa 40 Anos/40 Murais (2014), desapareceram quando os muros foram demolidos ao serviço da gentrificação da cidade. A Revolução permanece simbolicamente sintetizada na figura do soldado, identificado com Salgueiro Maia ou não, e nos cravos vermelhos. De resto, as duas recentes intervenções de Shepard Fairey não escapam a este modelo. Nesta matéria, impõe-se destacar o mural de Tamara Alves, pintado no exterior da Assembleia Municipal de Lisboa, na sequência do concurso 25 de Abril Hoje, que desconstrói esta tendência. Mantendo apenas o cravo simbólico da Revolução, este mural mostra corpos femininos e masculinos, dinâmicos e intemporais em esforço coletivo, insinuando que, mais do que memorializada, a Revolução poderá ser reinventada e reescrita a utopia.

A periferia de Lisboa revela outras cores que o centro não mostra. Em Loures, os murais pintados durante o evento Os Muros que Abril pinta, no âmbito da iniciativa 40 Anos/40 Murais, no centro urbano, resistem ao tempo, convidando a outros olhares. Na Quinta do Mocho, o mural que celebra Amílcar Cabral assegura a construção de uma contramemória cuja representação não resiste no centro. As cores da street art na periferia refletem as tensões geradas pelo confronto da memória oficializada e de contramemórias que desafiam a narrativa da história dominante. No Bairro do Alto da Cova da Moura, outro mural, pintado no âmbito dos 40 Anos/40 Murais, evoca a memória de Eduardo Pontes, um dos fundadores do MES, preso político e fundador da Associação Cultural Moinho da Juventude. A memória da Guerra Colonial, destacada da memória da Revolução, é preservada nestes murais às portas de Lisboa. No centro urbano, a figura do soldado de cravo vermelho representa outras lutas, mais vitoriosas e menos sangrentas. A memória histórica da censura e do medo preservada nos murais em Loures dialoga com outros graffiti que dão conta do medo da perseguição policial — como o mostra um pequeno stencil numa parede do Bairro do Alto da Cova da Moura. A insegurança não está representada no centro urbano. Se a memória do trabalho social de Eduardo Pontes faz sentido numa parede da associação que fundou, ali a street art dá conta de problemas de exclusão social que a Revolução não resolveu.

Não deixa de ser irónico o facto de Odeith ter pintado o único mural sobre Eusébio (2014) num muro limítrofe do Bairro do Alto da Cova da Moura. A tensão gerada pela transladação de Eusébio para o Panteão Nacional revelou o confronto entre a força motriz da cultura popular e os interesses políticos, que dela sempre procuraram tirar partido para legitimar de uma certa ideia de lusofonia, sucedâneo de uma cultura luso-tropicalista. O slogan “Tu és o nosso Rei” ultrapassa a paixão do futebol. Na fronteira com o bairro e com vista para os efeitos da marginalização social, o determinante possessivo sugere um resgate do espaço de pertença que a memória do colonialismo sempre negou.

 

Sugerir correcção
Comentar