Sim, o afecto na política conta para o sucesso de um país

A eleição de Marcelo Rebelo de Sousa no dia 24 de Janeiro de 2016 trouxe as emoções para o terreno político. Será que este ambiente carregado de sentimentalismo está relacionado com os bons resultados do país? Muito mais do que se pensaria. “Os astros têm estado bem alinhados em Portugal”, diz o neurocientista António Damásio.

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Marcelo Rebelo de Sousa trouxe os afectos para a arena política. A sua eleição como Presidente da República, apenas dois meses depois da entrada em cena de uma solução governativa inédita, consagrou o novo ciclo político e psicológico do país. Portugal entrou a partir daí numa autêntica espiral ascendente, com resultados positivos claros na economia e na governação em geral, mas também com sucessos invejáveis e inesperados em muitos outros sectores — empresariais, culturais, desportivos, diplomáticos — com evidente reconhecimento internacional. Em meros dois anos, passámos de “lixo” a “heróis do mar”, numa visão feliz que Lídia Jorge escreveu ainda antes da vinda da troika.  

Em que medida se pode relacionar a mudança política com esta profunda alteração do sentimento colectivo e as vitórias alcançadas em catadupa? E que papel podem ter desempenhado as emoções nessa terapia colectiva (ou nessa revolução silenciosa)? Desafiámos cinco estudiosos das emoções de diferentes áreas a percorrer o caminho dos afectos até à política. E a resposta comum é: sim, os afectos dos líderes políticos contam e potenciam o sucesso de um país.

“Não tenho qualquer dúvida de que o perfil afectivo dos líderes políticos tem uma influência notável na homeostasia sócio-cultural e que pouco importa o tamanho do país, dado que a influência das personalidades políticas é transmitida à distância pelos meios da comunicação”, afirma o neurocientista António Damásio, em resposta escrita às perguntas do P2. “O afecto das figuras de autoridade copia-se e interioriza-se, inconscientemente e não só. Reflecte-se nos afectos de um povo e exprime-se através da esperança, do desespero, da calma e da confiança, da ansiedade e irritação desse mesmo povo.”

Mas isso, alerta, é uma faca de dois gumes: “O perfil afectivo de um líder, para o melhor e para o pior, pode actuar independentemente das ideias e das acções políticas objectivas. É possível a um líder de que o povo gosta defender políticas desastrosas e a situação inversa é igualmente possível.” O facto de viver nos Estados Unidos da América não deve ser alheio à necessidade de fazer este aviso.

Na sua última obra, A Estranha Ordem das Coisas – A Vida, os Sentimentos e as Culturas Humanas, Damásio parte do conceito de homeostasia como aquela energia vital presente em todos os organismos biológicos, mesmo os unicelulares, que os impulsiona não só no sentido da sobrevivência, mas da criação das melhores condições possíveis para a sua evolução e a da espécie. E defende que a interacção favorável e desfavorável entre sentimento e razão deve ser reconhecida nessa homeostasia, se quisermos compreender os conflitos e as contradições que afligem a condição humana, dos dramas humanos pessoais às crises políticas.

Perguntámos-lhe se esse raciocínio também se aplica a países e civilizações, ou seja, se é possível, através dos afectos, inverter o sentimento colectivo negativo em positivo. “Os instrumentos e as práticas culturais têm sido, historicamente, motivadas e moduladas pela homeostasia e pelos seus agentes principais: os sentimentos. É esta a ideia que defendo em A Estranha Ordem das Coisas. Assim sendo, a forma como decorrem os processos sociais e culturais está sujeita, inevitavelmente, em maior ou menor grau, à influência dos imperativos homeostáticos”, responde.

Mas a transposição do raciocínio original da biologia para a política exige cautela e tempo: “É necessário ter em conta que a homeostasia se desenvolveu e refinou ao longo da evolução biológica de modo a promover a eficiência de vidas individuais e de pequenos grupos. Claro que é possível transferir essa eficiência para a escala de nações, mas a transferência não é fácil. Requer um esforço civilizacional intenso e duradouro. Uma parte significativa dos problemas das sociedades actuais tem que ver com esta dificuldade e com a insuficiência do esforço civilizacional.”

Um esforço civilizacional “intenso e duradouro” para promover a eficiência da vida colectiva é algo de que Portugal não se pode gabar; ao invés, o seu percurso tem sido disruptivo e com picos de profundo retrocesso. O período que antecedeu estes dois últimos anos foi um deles.

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Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa Daniel Rocha

De “lixo” a “heróis do mar”

O momento em que Lídia Jorge escreveu o ensaio O Contrato Sentimental (Sextante Editora, Setembro, 2009) é anterior à crise económica, política e social ocorrida a partir de 2011 em Portugal, mas a sua visão sobre a bipolaridade lusa, oscilante entre o sentimento de não ser mais que “lixo” e a condição de “heróis do mar” a que se alcandora com pequenas vitórias, era premonitória. Foi nesse ano de 2011 que as agências de rating atiraram Portugal para o “lixo” e durante quatro anos o país viveu como tal, num período de austeridade (não apenas económica e financeira, mas até colectivamente emocional) apresentado como uma inevitabilidade. A saída do resgate, em 2013/14, podia ter alterado naturalmente esse panorama, mas foi preciso a entrada em cena de um novo ciclo político para que essa mudança anímica se tornasse visível.

Na conversa com o P2, Lídia Jorge vai mais atrás para melhor perceber o que aconteceu depois, e porquê. “Ainda está por demonstrar a necessidade da intervenção da troika naquele ano de 2011. Mas o clima que então foi gerado passava pela demonstração para o exterior de que se vivia um desastre total. Essa matriz do Governo que sustentou a intervenção da troika usou o clima de desastre até à exaustão, não só executando um programa de grande austeridade como anunciando medidas cada vez mais gravosas, e assim se criou um clima claustrofóbico. Só não o era para os próprios e para a Europa severa daqueles dias.”

Essa sensação de claustrofobia é também identificada por Bruno Paixão, doutorado pela Universidade de Coimbra em Ciências da Comunicação e investigador de Comunicação Política: “O período de austeridade conduziu a uma espiral de instabilidade e encarcerou as pessoas na representação do papel de servos do seu tempo. A política de austeridade trouxe ao cidadão o medo de não ser capaz de organizar a sua vida no interior da nova realidade económica, receio de não ser reconhecido e temor de perder a posse do que legitimamente tinha como seu.”

“Esse clima castigador que levava a uma redenção pela via da austeridade foi executado com notório desacautelamento emocional”, analisa Lídia Jorge, anotando o contraste: “Enquanto em Itália uma ministra chorava em público porque aumentava os impostos da classe média, em Portugal as medidas de austeridade eram apresentadas com notória satisfação e regozijo. Estabeleceu-se um horizonte de não esperança.”

“O país estava de gatas”, resume o psiquiatra José Gameiro, especialista em Terapia Familiar, colunista do Expresso e colega de escola de Marcelo Rebelo de Sousa. “Foram anos muito duros, sobretudo para algumas pessoas, com uma crispação muito grande, quer social, quer pessoal, quer com os actores políticos.”

“Era necessária uma mudança de protagonistas e uma mudança de sentido político”, afirma a escritora. Quis o calendário eleitoral que entre a tomada de posse do Governo apoiado pelas esquerdas e a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa passassem meros dois meses. E quis o destino e as circunstâncias conjunturais que precisassem tanto um do outro.

Aos novos rostos institucionais do país, assumidos por António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa, “cabia trazer uma mensagem oposta à que vinha vigorando”. Nesse sentido, sustenta Bruno Paixão, “a mudança de pessoas trouxe a almejada mudança no clima político e social e permitiu a Portugal virar efectivamente a página, com a inerente retoma de optimismo e confiança”.

Isto apesar de as políticas que se seguiram não terem invertido a lógica da severidade dos orçamentos, nem a população ter visto o dinheiro do seu bolso aumentar significativamente, como sublinham Lídia Jorge e José Gameiro. “O que mudava era o clima emocional. Foi como se, de novo, se pudesse respirar. Os políticos deveriam meditar sobre o que o teatro grego ensina em relação à ligação da conduta dos dirigentes e o clima psicológico da cidade. Minimizar os limites da capacidade de sacrifício é sempre uma grande maçada”, comenta a escritora.

Estava “escrito nas estrelas” que a mudança política era vital para a alteração desse clima emocional, capaz de gerar um contraciclo que já tardava. Para António Damásio, “os astros têm estado bem alinhados em Portugal”. “Ao lado de um Governo que funciona e obtém resultados, o povo elegeu um Presidente capaz não só de dispensar simpatia, carinho e compaixão, mas também de inspirar essas mesmas emoções positivas no povo que o elegeu. Nada de mais saudável no momento político actual, que se define, internacionalmente, em torno de emoções destrutivas, de conflitos sem solução aparente e de intolerância.”

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Lídia Jorge: "Marcelo acolhe os êxitos, junta-se à festa e à alegria, e faz delas bons cartazes de difusão, mostrando os casos de sucesso ao país, como espelho. Ajuda a ter confiança e crença no futuro” Miguel Manso

Helena Marujo, coordenadora do Executive Master em Psicologia Positiva Aplicada e co-autora de um estudo sobre a felicidade dos portugueses, também sublinha a importância desse “alinhamento de astros”: “Tivemos esta maravilhosa conjugação de um Governo que tem conseguido, de forma mais distanciada das pessoas e mais focada na performance, obter resultados a transcender as limitações que estávamos a viver, com um Presidente mais próximo das pessoas.”

Na sua perspectiva de psicologia positiva, Helena Marujo considera que Marcelo Rebelo de Sousa “faz parte do modelo de como se constrói a felicidade pública”. Mas, para isso, “temos de ter organizações virtuosas, um crescimento sustentável e relações entre as pessoas que trazem a fraternidade e a reciprocidade para o centro das relações”. “Marcelo Rebelo de Sousa tem tentado fazer esse caminho, também na maneira como se tem interligado com os nossos líderes governativos, com diálogo, uma tentativa de não estar inclinado sobre si próprio, fazendo a diferença num tempo em que tudo é instrumentalizado”, defende a professora do ISCSP e coordenadora do projecto da cátedra UNESCO para o Desenvolvimento da Paz Sustentável.

Outra vantagem das emoções e dos afectos é que ultrapassa as ideologias, nota a psicóloga: “A complementaridade Governo/Presidência está quase ao nível do arquétipo e tem conseguido criar um nível de confiança, de abertura, de respeito que nos tem ajudado a ganhar de novo uma certa estima como portugueses.” Mas não tenhamos ilusões: “Continua a ser difícil termos uma relação construtiva, positiva, com a nossa identidade nacional.”

O contrato sentimental

Se a conjugação novo Governo-novo Presidente foi importante, a forma como Marcelo Rebelo de Sousa interpreta as suas funções, no discurso e na práxis, tem tido um papel fulcral. “Sem dúvida que foi o Presidente da República que mudou o ambiente”, sustenta José Gameiro, com o distanciamento de quem se identifica com a área socialista, foi antigo apoiante de Jorge Sampaio e assume que não votou em Marcelo Rebelo de Sousa. Mas recorda como “a crispação inicial face à chamada ‘geringonça’ foi terrível”. “A solução governativa gerou conflito, mesmo entre algumas pessoas dentro do PS que foram contra, e um sentimento de traição por parte de algumas pessoas por não ter governado o partido mais votado.”

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“O Presidente da República tornou-se uma peça central do desanuviamento” Miguel Manso

“O Presidente da República tornou-se uma peça central do desanuviamento”, acrescenta Lídia Jorge. “Surpreendeu muito. Apoiou a solução governativa no país e na Europa, o que nem sempre é lembrado. Ao que me consta, Marcelo Rebelo de Sousa terá feito compreender, junto de instâncias europeias, o sentido da coligação de esquerda que lhes surgia, no início, como uma solução inviável. Defendeu a estabilidade, defendeu o sentido das alianças e o valor do consenso. Tem sido um intérprete astuto, surpreendendo, tanto quanto me dou conta, aqueles que pensavam que o comentador iria transformar-se num criador desestabilizante de casos políticos. Tem sido o contrário”, sustenta a escritora.

Desde o princípio do mandato, Marcelo foi construindo essa imagem de proximidade, tanto do Governo como do povo. Sobretudo do povo, que lhe devolvia os afectos e as selfies em recordes de popularidade. E não esperou pelas tragédias para entrar pelo “país esquecido” adentro, já lá tinha ido antes, em festas, feiras ou eventos. Quando voltou, nos dias de luto, já era da casa.

“Não duvido de que Marcelo Rebelo de Sousa estabeleceu um contrato sentimental com o país e incita os outros a estabelecerem-no também. Se não houver nenhuma surpresa, o seu mandato ficará na lembrança como o de alguém que soube segurar a cúpula e ser ao mesmo tempo eminentemente popular”, prevê a escritora. Um contrato sentimental baseado nos afectos: “Tem estado ao lado das populações, interpretando numa só pessoa o que as anteriores presidências interpretavam com duas. Marcelo Rebelo de Sousa desenvolve a actividade da Presidência em pleno e é a sua própria primeira-dama. Ele dá o rosto nos actos de caridade, nas festas escolares, nos lares de terceira idade, junto dos pobres e dos sem-abrigo.”

Quem estuda as questões da liderança anda muito interessado nesta dicotomia das lideranças mais femininas ou mais masculinas — que não tem que ver com o ser homem ou mulher — e dos líderes integradores, que conseguem ter características de um lado e de outro, como explica Helena Marujo: “Penso que no Presidente há uma complementaridade entre as emoções — que são do domínio tradicional do feminino — e a razão, no sentido de assegurar que há uma resposta de estruturação racional. O Presidente faz esse esforço de assegurar os dois lados, de ser um líder integrador, apesar de ser mais visível o lado feminino da sua liderança.”

Esse esforço pela omnipresença, que também lhe vale críticas, a escritora interpreta-o como um factor positivo. “O país profundo, para usar o chavão, é pobre e carente de tudo. Encontrarem-se os populares com o Presidente do seu país transforma-se num episódio de relevo nas suas vidas. Já vi pessoas que guardam na sala a fotografia com Marcelo, ainda que das suas pessoas só apareça um pouco da cabeça. Essa dimensão representativa junto das populações, no nosso regime, é muito importante.”

Ninguém consegue sentir sempre compaixão

Há cerca de quatro anos, a filósofa norte-americana Martha Nussbaum lançou o livro Political Emotions — Why love matter for justice, onde reflecte sobre a necessidade de trazermos para o foro público as emoções, encaradas como intrumento fundamental de justiça e de igualdade; estratégia para conseguirmos caminhar para formas sociais de maior paridade e maior respeito. “O problema é conseguir isto sem sentimentalismos”, explica Helena Marujo.

A opção pelos afectos não é isenta de riscos, nem mesmo para o chefe de Estado. A psicóloga explica porquê: “A presença do Presidente da República em múltiplos momentos associados a emoções negativas, em que ele mostrou compaixão — uma emoção que estamos a estudar no contexto das organizações — tem riscos, porque é uma emoção da qual nos cansamos. Ninguém consegue estar muito tempo a ser compassivo, e isso também pode acontecer a quem vê alguém ser compassivo. E porque é uma emoção que tem de ser autêntica, não pode ser percepcionada como um processo manipulatório, com uma outra intenção.”

Mas esse é um risco muito reduzido para o actual Presidente da República, pelo menos a julgar pelo que dele conhece o psiquiatra José Gameiro. “Marcelo Rebelo de Sousa tem uma vantagem muito grande: ele é muito próximo das pessoas e precisa que as pessoas sejam próximas dele. É uma vantagem porque se percebe que é genuíno. Houve muitos líderes políticos que tentaram ser próximos das pessoas, mas percebia-se que não tinham grande necessidade pessoal disso. Acho que Marcelo tem necessidade disso. Sempre foi assim. Conheço-o desde os oito anos, andámos na escola juntos.”

Gameiro conta que, em Cascais, Marcelo parava para falar com as pessoas todas, cumprimentava toda a gente, e não era Presidente da República nem sonhava ser. “Era uma coisa natural nele. Está muito à vontade, gosta e, provavelmente, tem necessidade [desse contacto]. As pessoas precisam dele hoje em dia, de facto precisam, porque ele tornou-se uma pessoa próxima, presente, mas ele também precisa das pessoas, o que é óptimo.”

Mas nem sempre a autenticidade chega. Na visão de José Gameiro, Marcelo Rebelo de Sousa “usou politicamente” os incêndios “e as pessoas não gostam disso”: “Custa-me que ataquem o Governo por causa daquilo, acho que aconteceu assim. Marcelo foi lá muito, tirou dividendos políticos disso. Mas aquilo é genuíno nele. É um lado cristão, que antes de ser Presidente o fazia visitar doentes em estado terminal, ou que o levou a ajudar muita gente aqui em Cascais, até financeiramente.”

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“Ele é um activo termómetro que mede a temperatura do povo, é seu porta-voz, a sua alma mater", diz Bruno Paixão DR

Não é preciso ser-se psiquiatra para perceber que a expressão dos afectos é um instrumento da acção política deste Presidente, “mas, mais do que isso, é um traço da sua personalidade”, nota Bruno Paixão. “A sua biografia mostra-o em diversas circunstâncias, o que leva a que essa prática não seja artificial. Como o próprio afirmou, as pessoas estavam pessimistas, cépticas e crispadas e a mera viragem psicológica, que passou pelo universo dos afectos, foi uma viragem política fundamental”, diz o investigador em comunicação política. Parafraseando Marcelo, hoje é impossível fazer política na base apenas da cabeça.

“O Presidente procura que os afectos sejam inseparáveis da razão, inaugurando assim uma nova sensibilidade política e uma maior proximidade entre o Estado e os cidadãos. Ele sabe que corre com isto alguns riscos de administrar em excesso a dose dos afectos e assim vulgarizar a função, transformando a sua comunicação num ‘saco roto de beijos e selfies’. Corre inclusivamente o risco de os afectos abafarem o papel da racionalidade. Agir com emoção é poder precipitar-se, o que já lhe aconteceu”, acentua Bruno Paixão.

Helena Marujo junta outros perigos. “Na psicologia, estudamos os contratos psicológicos que as pessoas têm com as empresas e as organizações, qual é a expectativa que crio e que me é criada. É uma espécie de contrato sentimental. Acho que o Presidente faz mais um convite do que um contrato, no sentido de que, sabendo que é uma relação de longa duração, não pode viver só de paixão, as pessoas têm de ser integradas em projectos, em sentidos colectivos. É um pau de dois gumes: de que maneira é que isto pode ser vivido e alimentado não apenas com a emoção e a intensidade do momento, mas numa perspectiva de longo prazo. O Presidente tem feito grandes esforços para estar muito envolvido em tudo o que está a acontecer no país, talvez seja a sua forma de perceber que este convite à relação emocional precisa de saber que está associado a projectos. Não é só paixão e comoção imediata.”

O provedor de cada português

De certa forma, é a essa ligação directa povo-Presidente, sem intermediação nem no voto nem na rua, que dá corpo à nova competência que Bruno Paixão constata ter sido acrescentada ao papel presidencial por Marcelo Rebelo de Sousa: a de “provedor de cada português”. “Ele é um activo termómetro que mede a temperatura do povo, é seu porta-voz, a sua alma mater. Mesmo ao aprovar ou vetar diplomas, parece fazê-lo sob essa condição. Aconteceu ainda recentemente, com a devolução ao Parlamento da alteração à lei do financiamento partidário”, avalia o investigador.

“Marcelo é um estratega político que arrisca com base nas suas percepções, emoções e sentimentos. A sua mundividência, que inspira e expira política, fê-lo montar desde o início da sua campanha um cenário de afectos para o exercício do seu mandato, com um guião gizado pelo próprio. A determinação de conciliar as partes e a empatia que coloca na sua comunicação têm-no ajudado no objectivo de abranger quase todas as franjas da população e do espectro político. A consequência disso é uma atenuação ideológica de facção que o seu antecessor não conseguiu apagar”, prossegue.

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“O perfil afectivo de um líder, para o melhor e para o pior, pode actuar independentemente das ideias e das acções políticas objectivas. É possível a um líder de que o povo gosta defender políticas desastrosas e a situação inversa é igualmente possível." Rui Gaudêncio

É também surpreendente, considera Bruno Paixão, que Marcelo mantenha um ritmo frenético ininterrupto há tanto tempo, “transformando a maratona presidencial de cinco anos numa corrida veloz de 100 metros”. “Ninguém mais tinha mostrado tanto pulmão político como Marcelo, sendo presente, activo e dedicando humanismo em cada acção presidencial. Por isso, Marcelo consegue fazer pontes onde a direita não está habituada e aproxima-se mais daquilo que a própria esquerda vê num Presidente.”

“Claro que ele não tem de governar, é muito mais fácil para ele, ser Presidente da República é muito mais fácil do que ser primeiro-ministro”, salienta por seu lado José Gameiro. “Ele interpreta os sentimentos das pessoas e tem um primeiro-ministro muito mais frio, muito mais contido, que tem de governar, mas claramente com muito mais dificuldade de se aproximar das pessoas. O Presidente faz o contraponto. No Governo, não há ninguém que consiga expor esse lado mais empático, mais afectuoso”, frisa o psiquiatra. Nesse sentido, considera que Marcelo Rebelo de Sousa “desempenha muito bem o papel: ser Presidente da República em Portugal é 95% disto e depois há 5% complicados”.

Antigo apoiante da candidatura de Jorge Sampaio a Belém, Gameiro analisa as diferenças entre os dois tipos de homens de afecto que são os dois presidentes. “Jorge Sampaio é um homem muito emotivo, muito afectuoso mas tem um enorme pudor em relação às pessoas, tem sempre medo de as incomodar ou de que elas pensem que ele está a usá-las. Se houver um grupo de pessoas, Sampaio tem algum medo de se intrometer, enquanto Marcelo avança e cumprimenta toda a gente. Sampaio é um low profile, é muito afectuoso mas muito mais esquivo, por pudor. Ao longo dos dez anos de mandato foi melhorando isso.”  

E Mário Soares? “Era diferente, ele sabia relacionar-se bem com as pessoas, mas não sei se era tão genuíno, era mais do teatro político. Soares não era um homem do povo, estava bem num meio mais intelectual; acho que não se sentia bem numa tasca, enquanto Marcelo se sente bem numa tasca. Acho que é essa a diferença.”

E as vitórias, interiorizamo-las?

A espiral de energia positiva que se gerou com a mudança de ciclo político é poderosa, mas não se deve a qualquer “milagre”. Ressalvadas as conquistas obtidas a nível económico, financeiro, político e social, o que já não é pouco, para os interlocutores ouvidos pelo P2, todas as outras vitórias alcançadas a título desportivo, científico e cultural no arranque do novo ciclo político não passam de coincidências.

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“É sempre especulativo fazer a ligação entre uma coisa e outra”, diz Lídia Jorge. “Os sucessos dos portugueses são fruto da escola democrática prolongada, do investimento na ciência que foi feito, na capacidade de circulação dos portugueses pelos fora internacionais, e, sobretudo, de alguma coisa que não se explica — a vontade e o empenho individual que acontece por emulação, por acaso ou por milagre.” Ou por homeostasia, talvez dissesse António Damásio. “O que sabemos, isso sim”, prossegue a romancista, “é que Marcelo acolhe os êxitos, junta-se à festa e à alegria, e faz delas bons cartazes de difusão, mostrando os casos de sucesso ao país, como espelho. Ajuda a ter confiança e crença no futuro”.

E o país bem precisa disso, diagnostica Helena Marujo. “Partimos de um défice tão grande, de carências afectivas tão profundas, que conseguirmos encher este reservatório é um processo longo. Mesmo neste momento bom em que estamos a viver continua a haver a dificuldade de termos uma perspectiva honrada de nós próprios. Continuamos a ser um povo que não arrisca a alegria, a esperança.”

“Quando trazemos uma linguagem política diferente — e eu acredito que a linguagem constrói a realidade —, quando trazemos um sentido de colectivo maior e abrimos esse espaço estranho da ternura, do carinho, como um fio que ajuda a tecer a coesão social, nós ficamos melhor. Mas depois, quando acontece alguma coisa má, temos uma grande tendência a generalizar o negativo e não fazemos o mesmo com o positivo. Mas são duas faces da mesma moeda”, analisa a psicóloga.

Lídia Jorge vê uma relação entre essa “alternância bipolar” lusa com a alternância democrática em Portugal: “Os exageros do desastre, sempre arvorados pelas oposições, e as glorificações mirabolantes dos governos, nos períodos dos actos eleitorais, ajudam a criar essa bipolaridade que passa de campo para campo em ciclos de alternância, conforme as cores políticas que estão no poder, o que deixa sempre um lastro de insegurança e mal-estar.”

Politicamente, diz a escritora, somos extremamente emocionais e clubistas. “O mesmo hospital, com os mesmos problemas, os mesmos hábitos, é visto, pelo médico que nele trabalha, como um lugar bastante razoável quando o seu partido está no governo, e passa a um lugar execrável, logo no dia a seguir à mudança de liderança. Os próprios comentadores, marcados também por forte carga ideológica, concorrem para os cenários de êxito/desastre. O maniqueísmo ideológico de cúpula transforma-se em maniqueísmo cultural de base.”

Estamos condenados a isso? “Vivemos um tempo de distopias, de muito cinismo. Tudo o que sejam sinais, práticas que ajudem a mantermo-nos humanos e voltar a acreditar em utopias é aquilo que nos fará acreditar em nós como seres humanos”, defende Helena Marujo. Mas este processo demora e precisa de estímulo. Precisa de pessoas que estão “em lugares simbólicos, como a Presidência da República”, que nos “possam chamar a atenção para sinais de que continuamos humanos e promovam esta capacidade de acreditarmos uns nos outros, de construirmos em conjunto, de nos sentarmos a colaborar, a dialogar, virados para um sentido comum colectivo. Quando isso acontece, tudo floresce.”

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José Gameiro: "Ser Presidente da República em Portugal é 95% disto e depois há 5% complicados”
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