O poder político e a autonomia do Ministério Público

É de repudiar decididamente interferências alheias, uma vezes despudoradamente e outras, mais sofisticadas, mas todas elas a exigir uma vigilância crítica.

As declarações do Presidente angolano relativamente ao processo, a correr termos na justiça portuguesa, sobre Manuel Vicente, ex-vice-presidente do país, acusado de corromper um ex-procurador do Ministério Público português, demonstram que Angola encara como problema político uma questão que é meramente judicial. Deste modo, não compete à diplomacia ou aos poderes políticos de ambos os países resolver esta questão, uma vez que em Portugal existe a separação de poderes e o Ministério Público (MP) goza de autonomia constitucional face ao poder executivo. E não competindo ao Governo português realizar ou promover quaisquer diligências no processo, apenas há que esperar que a justiça cumpra a sua missão. 

A propósito, importa recordar que é grande a importância que o MP possui no Estado de Direito democrático, uma vez que a instituição se norteia pela defesa do interesse social, sobretudo na área criminal, agindo para e em nome da colectividade. Para uma actuação mais eficaz e transparente, é imprescindível dotar o MP de autonomia face ao poder executivo, o que não acontece em alguns países, mesmo no âmbito da União Europeia. Por exemplo, em França (considerada o berço da instituição) e na Alemanha, o MP está subordinado ao ministro da Justiça, cujas directrizes têm carácter genérico ou específico. Ao contrário, na Itália, legalmente, o poder executivo não exerce sobre o MP qualquer ingerência, nomeadamente através de directrizes, sendo a instituição dotada de independência funcional, hierárquica e disciplinar em relação ao governo.

Em Portugal, a história do MP seguiu um caminho diferente dos dois primeiros países acima mencionados. Com efeito, a estrutura do actual MP, que os constituintes de 1976 conceberam, não permite nenhuma aproximação, nos planos estrutural, funcional, estatutário e organizacional do MP ao regime anterior, que era uma estrutura monolítica, monocrática e verticalizada. Tendo como única função constitucional a representação do Estado, o MP estava ligado ao governo, por estreito vínculo hierárquico, através do ministro da justiça. Porém, os constituintes de 1976, ao modelar o novo MP, asseguraram-lhe as condições necessárias ao exercício autêntico e livre das suas funções. Num sistema democrático, como é o nosso, a actuação do MP na defesa da legalidade também não pode oscilar ao sabor das filosofias e opções políticas dos governos que se sucedem. No exercício da acção penal, preconizada constitucionalmente, não poderá o MP obedecer a outros comandos que não os que dimanam da própria lei e lhe sejam impostos pela sua consciência ética e profissional.

No quadro constitucional actual, o legislador deixou vincadamente destacado que os magistrados do MP dependem exclusivamente, na ordem hierárquica, da Procuradoria Geral da República (PGR), orgão supremo do MP, sendo dirigida por uma individualidade (Procurador Geral) de nomeação e exoneração livres do Presidente da República, perante quem, obviamente, será exclusivamente responsável. Sendo a PGR o orgão definidor das grandes linhas estratégicas de atuação do MP e que devendo nele ter assento representantes da Assembleia da República, bem como dos vários escalões da hierarquia, como impõe as exigências da democraticidade interna, estabelecida na Constituição, por essa via, sempre o poder politico poderá, respeitando a autonomia do MP, fazer ouvir as necessidades de ordem pública que determinem particulares formas de actuação do MP nesse domínio ou em qualquer outro.

A autonomia do MP é tão importante na realização de uma justiça isenta e imparcial que são cada vez mais os países a seguir estrutura organizacional idêntica. Mas, nada desta organização será eficaz se os magistrados judiciais e do MP, nos momentos cruciais em que são postos à prova, não revelarem coragem moral, firmeza de ânimo, rectidão de carácter, lucidez analítica dos factos e espírito isento. Sem uma verdadeira autonomia do MP, face ao executivo e outros poderes do Estado, fica seriamente ameaçada a realização da missão que lhe é própria, no âmbito da acção penal, que apenas deve ser orientada pelo princípio da legalidade. 

O Ministério Público (MP) português, por vezes, queixa-se da falta de autonomia, apresentando como única razão a sua dependência financeira do Estado, mas não se vislumbra em que medida essa razão pode interferir nessa autonomia. De todo o modo, seria importante que se chegasse à conclusão acerca do melhor modelo a adoptar no âmbito internacional ou pelo menos no âmbito dos países da União Europeia. A uniformização seria mais um elemento de coesão. E não restam dúvidas que o modelo constitucional português é o que maiores garantias de imparcialidade e de isenção dá à justiça. A essa conclusão chegou a Associação Internacional de Procuradores, reunidos em Lisboa, em junho de 2016, para debater a independência do Ministério Público (MP) no mundo. Neste fórum estiveram presentes cerca de 150 procuradores de 24 países. Daí ser de repudiar decididamente interferências alheias, uma vezes despudoradamente e outras, mais sofisticadas, mas todas elas a exigir uma vigilância crítica.

 

 

 

 

 

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