No interior do Algarve, uma aldeia caminha para não desaparecer

O primeiro festival de caminhadas do Algarve nasceu em 2013 para devolver ao mapa a freguesia do Ameixial, porta de entrada na região para quem desce a Nacional 2. De passeio em passeio por uma paisagem de cerros e ribeiros, preservam-se as memórias, os costumes e a economia de uma pequena aldeia perdida na serra do Caldeirão.

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Foi aqui, nas margens do último rio selvagem do Algarve, que Marco Brás descobriu o que significava liberdade. Quando chegavam os dias quentes de Verão, a ribeira do Vascão tornava-se palco privilegiado das brincadeiras com os outros miúdos do Lourencinho, lugar de uma dúzia de casas a “uns 15 quilómetros”. Vinham correr pelos montes da serra do Caldeirão, fazer piqueniques, saltar para o rio. A única preocupação que tinham era chegar a casa antes do jantar, para evitar ralhetes e castigos. “Aos 10 anos já éramos livres”, comenta, ao final da manhã.

É Marco, hoje com 32 anos, quem guia a caminhada junto à ribeira do Vascão, o maior curso de água do país que chega à foz sem interrupções artificiais, como barragens, reservatórios ou represas. Criados pela mão do homem, veremos apenas velhos moinhos, algumas aldeias dispersas pelos montes e, quando as margens se aproximam, pontilhados de rocha que outrora os habitantes deixaram para cruzar de uma região para outra. Aqui, o Algarve. Lá, o Alentejo. Fronteira natural que serpenteia em torno dos cerros até desaguar no Guadiana.

A ribeira do Vascão é um dos ex-líbris desta zona do interior algarvio e, por isso, cenário de vários trilhos propostos pelo Walking Festival Ameixial, o primeiro festival de caminhadas criado na região. Desde 2013, o último fim-de-semana de Abril é preenchido por passeios pedestres pela serra, entre paisagens, tradições e vestígios arqueológicos. Em meados de Novembro, a campanha de reflorestação prometida na última edição serviu de mote à apresentação do programa para 2018. Ainda não está totalmente fechado, mas deverá incluir mais de 60 actividades, entre dezenas de caminhadas, workshops, tertúlias, animação e actividades infantis. Uma das novidades são os “jogos serrenhos”, inspirados nos Jogos Sem Fronteiras, mas com provas ligadas às tradições regionais da serra do Caldeirão.

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“Vamos apostar mais no carácter familiar e nos percursos acessíveis a pessoas com mobilidade reduzida e tentar atrair mais participantes estrangeiros”, enumera Bruno Rodrigues, da Proactivetur, uma das entidades que organizam o evento. À parte disso, os objectivos mantêm-se inalterados: trazer gente ao interior do Algarve, estimular a prática de caminhadas, dar a conhecer a região e os seus pontos de interesse arqueológico, paisagístico e cultural, potenciar o turismo fora da época balnear, acrescentar retorno directo na economia local e reforçar a identidade da comunidade. Toda a aldeia se junta à organização do evento e muitas das actividades são lideradas pelos próprios habitantes da freguesia.

Para Marco é uma estreia, mas o aficionado dos passeios de BTT conhece a serra como a palma da mão. É membro do Grupo Desportivo Ameixialense e foi ele que, com alguns amigos, desbravou parte do trilho que agora percorremos. Depois de largos minutos por estradas de terra batida, entre montados de sobro, medronheiros e azinheiras, desviamo-nos do percurso assinalado da PR21 para enveredar por um carreiro junto ao Vascão. Num cotovelo sombrio do espelho de água, alguém avista uma lontra. O grupo estanca, o mundo em suspenso, na esperança de que ela volte a surgir. Há quem ainda volte a ver o pequeno focinho, mas a maioria confirma apenas que não foi imaginação: os círculos na água mostram o rasto do mamífero fugidio. Retomamos a marcha, agora mais perto, já com a certeza que não a voltamos a ver. Lá ao fundo, uma garça pousa junto à água, enquanto um guarda-rios dança em voo à nossa frente. Já no final do percurso, uma águia-de-boneli fecha o leque de animais avistados durante o passeio.

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O tempo extremamente seco de um Verão que tardou em partir reduziu o caudal para metade e há zonas em que parte dos seixos que habitualmente cobrem o leito da ribeira estão a descoberto, tão dourados quanto os campos em volta. “Em Invernos rigorosos, a água chega a passar por cima do moinho”, apontará Marco, um pouco mais à frente, quando passarmos junto ao antigo moinho de água da Cascalheira. Na Primavera, o cenário do festival é bem diferente. “A ribeira já está mais cheia e está tudo verde em volta”, compara João Ministro, presidente da Proactivetur, que nos acompanha no passeio. É no Vascão que decorre uma das actividades mais concorridas: a caminhada radical, com troços literalmente dentro de água. “Houve alturas em que chegava ao peito”, conta Renato, que durante a tarde nos há-de mostrar como fazer pão à moda antiga, cozido no forno comunitário da aldeia.

Ervilhas com ovos e cozido de grão

Mas, antes, o almoço. A gastronomia serrana é uma das marcas distintivas do festival e muito se passa à mesa do Café Central do Ameixial, um dos dois restaurantes da aldeia. Quando a Estrada Nacional 2 ainda era uma das principais vias de acesso ao Sul do país, o Ameixial era a primeira terra que se atravessava em solo algarvio. Chegaram a morar mais de mil pessoas na aldeia. Agora restam umas cem. No café-restaurante, Maria Antónia e a cunhada, Maria Alice, não têm mãos a medir. No primeiro dia, servem ovos com ervilhas e entrecosto e galinha guisada. No segundo, o prato que é já uma tradição do festival: cozido de grão, que chega à mesa em pequenos tachos e alguidares. Já é raro encontrar comida caseira servida assim, sem pretensões, e as conversas alongam-se, encurtando o passeio da tarde. Na última edição, o impacto económico das refeições realizadas na aldeia ascendeu aos “cinco mil euros só no fim-de-semana”, contabiliza João Ministro.

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À beira da estrada, em direcção ao albergue e parque de caravanas instalados na antiga fábrica de cortiça, Gracinda leva a tarde na apanha de medronhos. Dos seis irmãos, apenas duas continuam a viver na Madeira, de onde é natural. Todos os outros vieram para o Algarve à procura de trabalho. “Queria ter uma casa e aqui é que dava para comprar” — justifica assim a escolha da freguesia remota. Na época do medronho, aproveita para ganhar um dinheiro extra. “Fico com uma parte do que apanho e o dono [da propriedade] depois vende o resto às destilarias”, conta. Um pouco mais à frente, uma ruína serve de tela a uma das intervenções artísticas que compõem “Paisagem e Memória”, criada na última edição por Sara Navarro.

Cada figura desenhada representa uma letra da escrita do Sudoeste, a mais antiga da Península Ibérica, criada durante a Idade do Ferro, há cerca de 2500 anos. O alfabeto surge escrito em arco, de baixo para cima e da direita para a esquerda, em antigas estelas de pedra, muitas delas encontradas no concelho de Loulé. Por isso, a identidade do festival define-se em torno da escrita do Sudoeste e algumas das actividades são centradas no misterioso alfabeto. Aqui e ali, surgem figuras anamórficas pintadas a branco sobre fachadas antigas. “A pessoa tem de caminhar para encontrar o ângulo certo”, explica João Ministro.

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É que só a caminhar, com tempo, se descobre a região e as suas gentes. Aninhados na serra do Caldeirão, entre as planícies alentejanas e as praias algarvias, os habitantes não se consideram nem uma coisa nem outra: são serranos. “Ainda hoje continuam a dizer que vão descer para o Algarve”, conta Bruno Rodrigues. “Ao primeiro contacto, são desconfiados e tímidos, mas depois [revelam-se] muito simpáticos.” No Monte dos Vermelhos, o pastor Leonel já nos espera na quinta. “Tenho dez cães, cerca de 150 cabras e seis bodes”, contabiliza. “Há 40 anos que tenho cabras. A primeira deu-me o meu avô, tinha eu sete anos”, recorda. Leonel vende queijo e cabritos. Mas tudo o que consomem na quinta é ali produzido pela família. “O pão, a carne, os enchidos, as hortaliças”, enumera.

Durante o festival, uma das caminhadas acompanha Leonel e o rebanho até aos pastos. Mas desta vez não temos tempo. Renato já nos espera junto ao forno comunitário, onde vamos cozer o pão. “A minha avó nunca ensinou a minha mãe, mas ela embirrou que queria aprender e começou a perguntar aos antigos”, recorda. O sol já se pôs quando regressamos ao Café Central para o lanche: tibornas feitas com o pão ainda quente, mergulhado em azeite, sal e alhos picados; e “costa”, o pão doce regional, recheado de doses generosas de canela e erva doce.

Em Abril, todos os caminhos voltam a partir do Ameixial, entre histórias, costumes, mesa farta e muita paisagem. Porque parar é desaparecer.

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Barranco do Velho
“Na última década, se calhar fomos os únicos a regressar”

Nos tempos áureos da Nacional 2, a paragem no restaurante A Tia Bia, em Barranco do Velho, “era o sinal de que tínhamos chegado ao Algarve”. Situada no cruzamento entre a via de acesso ao Sul do país e uma das estradas de ligação a Espanha, a pequena povoação funcionava como estação de serviço, no apoio aos camionistas e veraneantes. “Chegou a ter a maior paragem de autocarros do Algarve”, conta Nuno Pires, actual responsável pelo restaurante, com pensão no piso superior.

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Filipe Farinha/Stills

Depois de largos anos a trabalhar como chefe de cozinha nos restaurantes sofisticados da Quinta do Lago, Nuno regressou em definitivo à terra natal com a mulher, Cátia, há cerca de dois anos e meio. Queria “fugir à confusão” e voltar a legalizar a destilaria dos avós, onde produz a aguardente de medronho Alma Serrana. “No mesmo ano, surgiu esta oportunidade do restaurante”, recorda. O convite feito pelos antigos proprietários era irrecusável. Foi aqui que Nuno trabalhou pela primeira vez, teria uns 16 anos. “Era empregado de mesa, mas estava sempre a olhar ali para a cozinha”, ri-se.

“Foi aqui que aprendi que gostava de cozinhar, que era uma arte que podia desenvolver”, recorda. No curso tirado em Faro e nos restaurantes da Quinta do Lago aprendeu as técnicas modernas, a trabalhar o empratamento. Mas o que hoje chega à mesa são os sabores tradicionais da gastronomia serrana. “Aqui não se comia carne de vaca, por exemplo. São mais os assados no forno, o frango de panela, as migas.”

Ao fim-de-semana, a casa enche-se de comensais. Os caminhantes em passeio na Via Algarviana dão uma ajuda. “Passa por aqui o troço até Salir, com uma vista fantástica no topo da serra”, conta Cátia Graça. “É uma pena não termos mais portugueses a fazer a Via Algarviana, especialmente no Inverno. O tempo é fantástico, às vezes estou de t-shirt em Janeiro.”

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Filipe Farinha/Stills

Quando Nuno era pequeno, moravam em Barranco do Velho “umas 300 pessoas”. Agora não chegam a duas dezenas, a maioria com mais de 50 anos. A filha, de sete anos, é uma das mais novas. “Na última década, se calhar fomos os únicos a voltar”, conta Nuno. Depois de um período de adaptação ao sossego do interior, o casal, ambos com 37 anos, não quer outra coisa. “Nunca me senti tão em casa como aqui”, assume Cátia, pela primeira vez a viver numa aldeia. “As pessoas são diferentes. Falamos com toda a gente, qualquer pessoa convida-nos a entrar”, conta. “Não existem faixas etárias, porque vive-se em comunidade.” Se um vizinho precisa de semear batatas, logo aparecem mãos para ajudar. Trazem-lhes uvas, produtos da horta. “Se vou fazer um bolo e sente-se o cheiro na rua, já sei que tenho de fazer a mais”, ri-se.

Ao balcão do café, há conversa para horas e muitas histórias e dicas para dar sobre a região. Deixamos apenas uma: atravesse a estrada, suba pelas escadas até à igreja, pare exactamente no centro do largo e fale em voz alta para a panorâmica sobre a serra. A verberação que se sente é um fenómeno curioso que ainda ninguém nos conseguiu explicar.

 

A Fugas viajou a convite da Proactivetur

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