O Presidente Marcelo e o semipresidencialismo

Marcelo Rebelo de Sousa tem cumprido exemplarmente as funções que lhe foram confiadas pelos portugueses.

Para a formação do Estado de Direito foi decisiva a teoria da separação de poderes de Montesquieu, registada no célebre tratado De l`esprit des lois (Do espírito das leis), publicado em 1787. Para o autor, a liberdade é o direito de fazer tudo o que as leis permitem. Mas, segundo ele, a liberdade política só se encontra nos governos moderados, em que não se abuse do poder, ou seja, em que se não force os indivíduos a praticar atos que as leis não imponham ou não se impeça de fazer o que elas permitem. E Montesquieu conclui que o poder só pode ser limitado por outro poder.

Baseando-se na Constituição da Inglaterra e seguindo muito de perto o filósofo inglês John Locke, Montesquieu diz que no Estado existem três poderes: legislativo, executivo e judicial. Para que num Estado exista liberdade política é preciso que estes três poderes não estejam reunidos nas mesmas mãos e que se repartam por órgãos diferentes de maneira que, sem nenhum usurpar as funções dos outros, possa cada qual impedir que os restantes exorbitem da sua esfera própria de ação. É o célebre sistema dos “freios e contrapesos” (checks and balances).

Ao longo dos tempos, a teoria da separação de poderes sofreu algumas correções, sendo a mais importante a introduzida por Benjamin Constant, célebre escritor suíço, naturalizado francês, defendendo que, sendo os três poderes referidos por Montesquieu independentes, a ação deles não pode todavia deixar de se caraterizar pela cooperação e pela harmonia. Ora, isso só poderá conseguir-se desde que exista uma força que previna e resolva os conflitos entre eles, harmonizando-os quando desavindos. E essa força não pode ser a de nenhum desses três poderes porque, nesse caso, o que a tivesse subordinaria ou destruiria os outros. Logo, há que admitir um quarto poder, imparcial, com autoridade para intervir oportunamente, mediante uma acção preservadora e reguladora, despida de qualquer hostilidade.

Este poder moderador, num regime semipresidencialista, como é o nosso, cabe naturalmente ao Presidente da República (PR), mas não lhe cabe atuar como contrapoder. O conceito de árbitro, embora mais adequado ao léxico jurídico e jurisdicional do que ao político, enquadra-se também ele nas funções presidenciais, na medida em que, além de moderador, o PR poderá ser chamado, em determinadas circunstâncias, a resolver, com imparcialidade, questões importantes da vida política.

Estando acima dos partidos e como “guardião da Constituição”, como aliás exige a função presidencial, o Presidente da República não pode manifestar-se como presidente de fação. O baixo índice de popularidade de Cavaco Silva deveu-se muito a esta caraterística, causadora, além do seu próprio desprestígio, de um efeito banalizador da instituição, que Marcelo Rebelo de Sousa se encontra agora, magistralmente, a restaurar.

Mas a presidência de Cavaco Silva manifestou-se também em outros âmbitos constitucionais. Na verdade, nos poderes próprios e partilhados, são importantes, na estrutura constitucional, os poderes de controlo (vg. promulgação das leis, veto por inconstitucionalidade e político), justificados, juridicamente, pela obrigação de cumprir e fazer cumprir a lei constitucional. Em alguns casos, Cavaco Silva agravou as limitações resultantes do regime semipresidencialista, fazendo uma interpretação demasiado restritiva da Constituição, acompanhada, por vezes, por falta de coragem para usar o veto politico em leis com as quais não concordava, utilizando a “promulgação com esclarecimentos”, na tentativa de corrigir essa falta de coragem política. Por isso, o seu poder moderador e garante do regular funcionamento das instituições democráticas nem sempre foi exercido convenientemente, criando a convicção nos portugueses de que o cargo de Presidente da República era uma irrelevância no quadro constitucional. Do exposto, é de concluir que a designação caraterizadora da função presidencial, face à nossa Constituição, é, sem dúvida, a de moderador e árbitro, excluindo-se, liminarmente, a de contrapoder.

Enquanto algumas mentes ignaras ou mal-intencionadas acusam Marcelo de tentativa de presidencialização do sistema político, outros, por meros intuitos políticos, tentam fazer dele o líder da oposição. Outros ainda, mais venenosos, acusam-no de populismo.

Até ao momento, o Presidente Marcelo, sendo defensor do semipresidencialismo, tem cumprido, exemplarmente, as funções que lhe foram confiadas pelos portugueses, inaugurando um modo muito próprio de exercer a atividade política, adaptando na perfeição o seu humanismo cristão ao cargo de Presidente da República. Como resulta da sua Mensagem de Ano Novo, Marcelo procura interpretar a “palavra de ordem que vem do povo, deste povo, do mais sofrido, do mais sacrificado, do mais abnegado, que foi atingido com as tragédias dos incêndios, tão brutalmente inesperadas e tão devastadoras em perdas humanas e comunitárias”.

Como muito bem referia uma pequena nota na última edição do semanário Expresso, referindo-se a Marcelo, “a abrangência que alcançou na sociedade portuguesa não se compadece com rótulos que lhe possam afunilar a influência. Marcelo só tem de ser fiel a si próprio, livre e apenas comprometido com o que em cada momento sentir ser o interesse nacional”. Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um excelente Presidente da República e, por isso mesmo, os portugueses têm para com ele um enorme dever de gratidão.

O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico

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