Bairros sizianos

Em Vizinhança, Siza também é revelado como capaz de, através do desenho, antecipar pistas para a compreensão de modos não ocidentais de ocupação, uma das suas múltiplas formas de “transmutação”.

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O projecto para o Campo di Marte (Veneza, 1983) vai agora ser terminado Nicollò Galeazzi

Em Vizinhança, Onde Álvaro encontra Aldo, a proposta curatorial de Nuno Grande e Roberto Cremascoli, que representou Portugal na última edição da Bienal de Arquitectura de Veneza (2016), e que agora pode ser visitada na Garagem Sul do Centro Cultural de Belém, cruzam-se várias narrativas, apostando-se em diferentes públicos. Uma exposição deve ser assim: polifónica, plural. Se for de arquitectura, exige-se que seja mais ainda. Que fale ao âmago das pessoas, já que é de quotidiano que a arquitectura se sustenta. E contudo, apesar dos desdobramentos e leituras a que a exposição se presta, nas entrelinhas dos testemunhos que os dois comissários (também arquitectos) foram dando desde a montagem em Itália (25/05 a 27/11/2016), existiu sempre a convicção que se trata do quotidiano a ser sublimado pela presença inexorável da arquitectura. É também isso que corroboram os documentários da jornalista Cândida Pinto e do repórter de imagem Rodrigo Lobo exibidos pelo canal SIC e que completam os conteúdos expositivos. Ou os enquadramentos explicitamente arquitectónicos dos retratos das famílias que posam para a câmara do fotógrafo Jordi Burch. Portanto, no final, assume-se um forte componente disciplinar em toda a mostra — desde as maquetas expostas às conversas com os habitantes dos conjuntos residenciais que compõem o principal plano de fundo da exposição — e que não cede aos discursos condescendentes que recentemente têm circunscrito a arquitectura e o liso exercício profissional a um papel subalterno.

Em Vizinhança, a arquitectura não é um adereço, é o objecto: os vizinhos movimentam-se, cumprimentam-se, repousam, entre e dentro de prédios belíssimos — “peças” de arquitectura que acontecem por detrás dos artefactos que amparam o dia-a-dia. Até o subtítulo da exposição pressupõe contextualizações históricas e culturais significantes, já que interpela Siza e Rossi na mesma frase, e ao fazê-lo coloca-os no centro da cultura arquitectónica europeia, evidenciando a sua relevância no plano histórico e temporal em que nos encontramos hoje. Porque se esta exposição é sobre hoje, também é sobre a Europa, como se apreende melhor ao percorrê-la. (E se a evocação de Aldo Rossi parece ser o elo mais frágil do projecto curatorial, clarifica-se melhor quando se lê a partir de uma ideia de Sul da Europa e do movimento em direcção ao centro que lhe está subentendido).

Em Vizinhança, em primeiro lugar, existe o arquitecto — Álvaro Siza — e com ele quatro conjuntos residenciais colectivos emblemáticos por si desenhados, em pouco mais de uma década, durante o século passado: Bouça (Porto, 1973), Schlesisches Tor (Berlim, 1980), Campo di Marte (Veneza, 1983), e Schilderswijk (Haia, 1984). Quase todos tiveram origem em processos participativos, localizando-se então em zonas marginais aos centros históricos. Hoje, se alguns estão em áreas valorizadas, outros permaneceram em lugares estigmatizados. E a história da ocupação das cidades europeias faz-se cada vez mais do entendimento desses lugares que receberam os primeiros núcleos de migrantes não ocidentais e das tensões que foram acolhendo até à actualidade.

Contextualizar estas dinâmicas no plano na obra de Álvaro Siza é naturalmente uma das agendas da exposição. Os comissários criaram uma oportunidade para falar de Siza a partir de um dos períodos mais revigorantes da cultura arquitectónica portuguesa, vivido no rescaldo da revolução de Abril de 1974, e cujo resultado mais óbvio foi exposto através das acções atribuídas às Operações SAAL (Serviço de Apoio Ambulatório Local). Com a sua experiência testada em território nacional — ainda que inspirada em correntes internacionais que defendiam a legitimidade do direito ao lugar e à habitação por parte das populações mais desfavorecidas — deu-se a primeira vaga de internacionalização da arquitectura portuguesa nos tempos contemporâneos. A exposição explora este facto como meio de reforçar o posicionamento da cultura portuguesa — e de Siza como representante maior dessa mesma cultura — enquanto expressão de activismo social, precursora no engendrar de novas ou de outras formas de participação.

Mas é na resposta que Siza ensaiou fora de Portugal que se revela a chave de leitura da exposição. Porque, em Vizinhança, Siza também é revelado como capaz de, através do desenho, antecipar pistas para a compreensão de modos não ocidentais de ocupação (uma das suas múltiplas formas de “transmutação”). Trata-se de repor a face mais humanista e disponível da prática da arquitectura.  Levado pelos comissários, Siza regressou a alguns desses lugares, expondo-se à crítica mais severa, ao elogio mais rasgado, cerca de 30 anos depois. Um encontro que afinal se revelou cúmplice, porque implacável, nesses “bairros sizianos”, a arquitectura acontece quotidianamente. E é isso que nos diz Vizinhança.

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